sexta-feira, 26 de junho de 2015

Intolerância



No fim da tarde de ontem (22/6), o site do qual sou editora publicou uma entrevista com o deputado federal Jean Wyllys. O material faz parte de uma série de entrevistas em que o dr. Drauzio Varella conversa com várias pessoas de áreas diversas.

Pois bem. Dez minutos depois de a entrevista ser publicada, o site saiu do ar, por motivos que ainda estão sendo apurados. Isso significa que quase ninguém viu a entrevista, portanto.


Em poucos minutos, o post que anunciava a matéria no perfil do site no Facebook foi invadido por uma enxurrada de comentários homofóbicos. Nenhum refutava, com argumentos racionais, uma ideia sequer do deputado; todos desfiavam preconceitos.

Costumo me perguntar se a sociedade sempre foi assim preconceituosa e intolerante e apenas encontrou, com as redes sociais, espaço para destilar seu veneno ou se vivemos uma onda conservadora e intolerante. 

Provavelmente as duas coisas, mas na verdade os motivos que nos trouxeram até aqui pouco importam.

O fato é que as pessoas que respeitam os direitos civis e humanos, que questionam seus privilégios e pensam uma sociedade mais justa e igualitária, com espaço para todos, sem racismo, machismo, homofobia, intolerância religiosa (ou uso da religião para justificar abusos) e outros preconceitos acabam se calando diante dos argumentos chulos e grosseiros daqueles que se sentem no direito de julgar e apontar o dedo para os outros, que pregam o ódio e acham que proibição e punição são a resposta para todos nossos males.

Realmente, não é fácil. Na maioria das vezes, o silêncio parece a melhor opção, até porque como argumentar com quem não está disposto sequer a escutar?

Com receio de bater boca e perder tempo com quem não merece, engolimos a intolerância e nos lamentamos com aqueles que pensam como nós. Mas estamos errados. Não podemos nos calar e aceitar que a parte intransigente da sociedade assuma a liderança. Ela sabe se organizar, tem disposição e é, muitas vezes, bem persuasiva. Convence.

Posso ser otimista demais, mas não aceito viver passivamente em um mundo dominado pela mediocridade, que tenta acabar com a beleza da diversidade humana e nos enquadrar em um único modelo. E não vou entregar a sociedade da qual faço parte nas mãos dos intolerantes. Sinto muito.

Se você também se choca com o conservadorismo ignorante que nos assola, por favor, assuma posição. Não se deixe abater, não se esconda, não se omita.

Agora, se você não consegue fazer nada melhor do que xingar e agredir quem é diferente de você, sugiro que bata a cabeça na parede. Dizem que ajuda.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

quarta-feira, 24 de junho de 2015

As mulheres e o HIV


Logo que surgiu, no início da década de 1980, aids foi chamada de “peste gay” porque as pessoas pensavam, erroneamente, que a doença atingia apenas os homens homossexuais. Foi necessário pouco tempo para os cientistas demonstrarem que a doença era causada por um vírus, o HIV, e que sua transmissão se dava por via sexual e por sangue contaminado.

Como sabemos, as doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) não se restringem a apenas um dos sexos, e logo começaram a surgir casos de mulheres infectadas pelo HIV. Hoje, segundo o Boletim Epidemiológico HIV-Aids, divulgado em 2015 pelo Ministério da Saúde, em 2013 a razão de sexo nas faixas etárias de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos foi de 2,2 e 1,9 casos em homens para cada caso em mulheres, respectivamente, com tendência significativa de aumento nos últimos dez anos.

Há algumas razões para o aumento do número de mulheres infectadas. O primeiro diz respeito à anatomia dos órgãos sexuais femininos, pois a vagina oferece uma superfície de contato mais extensa que o pênis. Além disso, sua mucosa é mais suscetível a feridas e fissuras que podem servir de porta de entrada para o HIV.

O fato de o vírus ser inicialmente associado aos homossexuais fez com que muitos heterossexuais, homens e mulheres, dispensassem o uso de preservativos, acreditando ser imunes ao vírus.

A submissão às regras estabelecidas pelos homens, que frequentemente rejeitam a camisinha, é mais uma razão para a alta prevalência do HIV no sexo feminino. Como boa parte das mulheres é financeira e emocionalmente dependente dos parceiros, não causa estranheza saber que muitas aceitam o sexo sem proteção.

A infidelidade masculina, socialmente aceita, também colabora para que muitas mulheres em relacionamentos estáveis estejam mais vulneráveis à contaminação.

Outro motivo é que a geração mais jovem, que não viveu sob o medo da epidemia de aids, em uma época em que não havia tratamento eficaz contra a doença, deixou de usar preservativo. Segundo o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), divulgado no ano passado, 40% das mulheres não usam camisinha.

A mulher que vive com o HIV enfrenta muitos problemas. Em geral, depende financeiramente do homem que a infectou ou precisa ganhar a vida para sustentar os filhos. O medo do desemprego e do desamparo, entre outros temores, é responsável pelo alto número de distúrbios de ansiedade e depressão entre as soropositivas.

As mulheres mais jovens, que ainda não têm filhos, precisam enfrentar o dilema da maternidade. Apesar de a transmissão vertical (de mãe para filho) hoje ser baixa, graças ao tratamento realizado durante a gravidez, muitas abrem mão da maternidade por medo de contaminar os filhos ou de não viver tempo suficiente para criá-los.

Quando encontram um novo parceiro, as moças solteiras se deparam com uma difícil escolha: revelar logo que têm o vírus ou contar mais tarde, caso se envolvam?

Na primeira hipótese é quase certo que o parceiro se afastará, e ela ainda correrá o risco de que ele revele a outras pessoas seu segredo. No segundo caso, será que o parceiro saberá compreendê-la ou se sentirá enganado?

Na dúvida, muitas optam pela abstinência sexual. E, com medo do preconceito, omitem de todos o fato de ter o vírus. Tomam medicamentos escondidas, mentem para ir ao médico, não revelam nem mesmo aos mais íntimos sua condição.

A ignorância dos que ainda associam o HIV e a aids à promiscuidade também faz com que as mulheres infectadas se escondam, com medo de ser julgadas.

Isolada e solitária, a mulher soropositiva vive a face mais cruel do HIV-aids: o preconceito.

*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Sexo feminino


Uma das formas mais eficazes de a sociedade exercer poder sobre as mulheres tem sido, historicamente, o controle da sua sexualidade. São inúmeras as formas de restringir a sexualidade feminina, que vão desde a valorização da virgindade até a criminalização do aborto.

Alguns seres humanos, contudo, teimam em não seguir regras, mesmo quando impostas à exaustão. Graças a certas mulheres que não aceitam rótulos e julgamentos, somos obrigados a engolir um tipo cada vez mais comum: a mulher que gosta de sexo e não tem medo nem vergonha de dizer isso.

Essas mulheres têm a ousadia de escolher com quem, como e quando querem transar; sentem-se donas do próprio corpo, não se submetem aos desejos masculinos apenas para agradar aos homens e não se comportam como alguns acham que devem. E, pior, afirmam suas preferências para quem quiser ouvir, como sempre fizeram os homens. Talvez por isso assustem tanta gente.

Bem que tentamos desencorajá-las difamando-as, espalhando vídeos na internet, tentando dizer que elas não valem nada e que não se valorizam, mas elas teimam em ser quem são, fazer o quê?

Seu comportamento ofende nossa moral que, apesar de hipócrita, até bem pouco tempo atrás funcionava como modo de coerção. De repente, foi como se elas parassem de se importar. Nem o rótulo de ninfomaníaca, questionado por muitos psicólogos e psiquiatras por ser considerado mais uma forma de controle social do que um desejo sexual hiperativo parece constrangê-las.

Sim, existem mulheres que curtem sexo. E muito. Algumas, ainda, não se limitam a práticas convencionais ou a apenas um parceiro, pecado mortal numa sociedade monogâmica como a nossa, tudo sem o menor constrangimento.

Não sei que jeito a sociedade dará, mas vai ter de lidar com elas. Será obrigada a entender que, para um número cada vez maior de mulheres, viver à sombra do desejo, da expectativa e do julgamento masculinos não faz mais nenhum sentido.

Aceitem.

*Texto originalmente publicado na página "Quebrando o Tabu"

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Chega de cantada!



Não conheço nenhuma mulher que nunca tenha levado uma cantada na rua. Não importa a idade, as características físicas, o comportamento, a forma de se vestir, toda mulher que conheço já ouviu frases pretensamente elogiosas ou baixarias da pior espécie ao andar pela rua. 

Também nunca vi nenhuma mulher que gostasse de cantada. Dizem que até tem umas que curtem, mas nunca conheci nenhuma.

Liderada pelo think tank Olga, a campanha "Chega de fiu-fiu" (mais informações aqui) visa a combater essa prática tão enraizada em nossa cultura. Animada com a ideia, comecei a falar a respeito com moças e rapazes.

E descobri que muitos homens não entendem que receber cantada é uma violência para nós, mulheres. Fiquei surpresa, pois muitos deles não se encaixavam no estereótipo do bom e velho “babaca”. 

Então, rapazes, escrevo para vocês.

“Cantada” é um nome que vocês inventaram para suavizar e relativizar uma grosseria que nada tem de simpática. O verdadeiro nome disso é assédio sexual, caracterizado por qualquer manifestação sensual ou sexual alheia à vontade de quem se dirige. É totalmente diferente da paquera, quando há uma tentativa de aproximação com o consentimento de ambas as partes.

Paquera é legal, é bacana, é gostoso. Assédio, não. 

Queremos o direito de andar pelas ruas sem medo, sem precisar pensar se nossa saia está curta demais, se a calça está justa, se está muito tarde, de poder andar na rua sem escutar nada sobre nossa aparência, sem receber olhares que nos devoram, constrangem. Exatamente como vocês fazem todos os dias.

Queremos ter liberdade de ir e vir, de escolher nossa roupa e o caminho a ser tomado sem ter que lembrar o tempo todo que podemos cruzar com um homem que só quer demonstrar poder e nos intimidar. Sim, porque duvido que algum desses rapazes ache que de fato vai levar sua vítima para cama.

Assédio sexual é crime. Então antes de lamber os beiços e chamar aquela moça que cruza a rua de “gostosa”, saiba que você está agindo como um criminoso. E que a última coisa que a moça vai querer é olhar para você.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Às meninas do Piauí, peço desculpas

Se um grupo de cinco rapazes pegasse quatro ovelhas, levassem-nas para um local ermo, amarrassem-nas, estuprassem-nas, torturassem-nas e depois as jogassem de um barranco de 10 metros de altura, tenho certeza de que a notícia imediatamente se tornaria motivo de indignação nas redes sociais. Não sem razão, pois uma violência dessas não deve ser cometida nem contra animais.

No entanto, isso ocorreu em Castelo do Piauí, cidade de pouco mais de 20 mil habitantes localizada a 190 km da capital do Piauí, Teresina. A diferença é que as vítimas não eram ovelhas, mas sim quatro adolescentes com idades entre 15 e 17 anos. 

A notícia, contudo, não dominou as redes sociais e as rodas de conversa, tampouco os noticiários. Chocou, sim, a cidade, mas no resto do país, poucos sabem do crime.

Não é pouco comum que se estupre, torture e depois descarte mulheres como lixo; todos os estados brasileiros têm inúmeros casos semelhantes para relatar.
Mas não consigo me conformar com o silêncio diante dos crimes de estupro. Em que momento aceitamos viver em uma sociedade que tolera que mulheres e crianças sejam estupradas e tratadas como objetos descartáveis? Como viemos parar aqui?

Quando falamos em cultura do estupro, é isto que queremos dizer: aceitamos e até incentivamos, como sociedade, que se estupre mulheres. Não sabemos como tratar as vítimas, em geral consideradas culpadas ou responsáveis pela agressão, nem coibir e evitar que novos casos ocorram.

Somos responsáveis por cada estupro, por cada agressão, cada assassinato de mulheres. Se não praticamos o ato em si, colaboramos com ele com nosso silêncio e omissão.



Em nome da sociedade, da qual me considero parte atuante e responsável, peço desculpas, envergonhada, às meninas do Piauí.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Amor não machuca


"Em briga da marido e mulher, não se mete a colher.” Poucos ditos populares me causam mais repulsa. Porque ele justifica e legitima os milhares de casos de violência como os de Juliana Paiva Martins, assassinada aos 25 anos pelo namorado em um shopping de Aparecida de Goiânia, em Goiás. O delegado da cidade considerou o crime “passional”, que, por definição, é o homicídio que se comete por paixão. 

Não vejo paixão nem amor em um crime desses; vejo, isso sim, sentimento de posse e de superioridade e menosprezo pela vontade e autonomia da mulher. O crime, tão comum no Brasil, foi mais um caso de feminicídio, quando o motivo do homicídio ocorre em razão de gênero. Juliana, assim como tantas outras, morreu porque era mulher.

Entretanto, nem todo caso de violência contra a mulher acaba em homicídio. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular (2014), três em cada cinco mulheres jovens já sofreram alguma forma de agressão em relacionamentos afetivos. A mesma pesquisa revelou que 56% dos homens admitiram ter xingado, batido, empurrado ou obrigado a parceira a fazer sexo. É muita gente.

O que leva alguns homens a cometer atos de violência contra quem supostamente amam ou já amaram, com quem compartilharam alegrias, sorrisos e tristezas? Não consigo pensar em nada além do fato de que eles consideram a parceira parte de sua propriedade, de que podem dispor conforme sua vontade e desejos. 

Embora casos extremos possam chocar, aprendemos a tolerar pequenas violências cometidas em relacionamentos abusivos. É comum vermos mulheres que dizem não aceitar violência física, mas que aturam, muitas vezes, que os parceiros digam-lhes o que vestir, com quem conversar, aonde ir. A maioria não se dá conta de que, desse modo, está sendo vítima de abuso.

Qualquer imposição que viole a liberdade de outra pessoa é uma forma de violência. Ninguém tem o direito de lhe dizer o que pensar, como agir, comportar-se. 

Talvez quando aprendermos a respeitar o fato de que somos seres autônomos e que, portanto, nossas ações sobre o outro devem ter limites, os casos de violência doméstica diminuam, e as milhares de Julianas não mais paguem com a vida apenas por terem nascido mulher.

* Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"