sexta-feira, 27 de maio de 2016

Estupro: a ponta do iceberg

Em 2014, uma adolescente de 16 anos foi encontrada por familiares em seu quarto segurando o revólver do pai, um PM da cidade de Olímpia, no interior de SP. Ao perceber que a filha ia cometer suicídio, os pais insistiram com a menina para que revelasse o motivo do desespero. Ela, então, confessou: seu avô materno, Moacir Rodrigues Mendonça, a havia levado a um hotel e estuprado dias antes.

Diante da denúncia, Mendonça, então delegado da Polícia Civil, foi preso e assim permaneceu até semana passada, quando o juiz Eduardo Luiz Costa concluiu que não havia “prova segura” para a condenação. Para o juiz, apesar de o réu confessar ter feito sexo com a neta, o estupro não ficou suficientemente comprovado, “não bastando a simples relutância, as negativas tímidas ou a resistência inerte” da vítima para confirmar o crime.

Muito bem. Sempre que falamos em cultura de estupro aparecem pessoas lembrando que o estupro não é crime tolerado, sendo, inclusive, punido com pena de morte nas cadeias brasileiras. É verdade, poucos afirmam em sã consciência que o estupro não é crime. O problema está na definição do que é estupro.

É mais fácil aceitar que uma mulher dominada por um desconhecido, sob a mira de um revólver, seja obrigada a ceder, ou que uma criança de dois anos violentada pelo tio não possa ser considerada responsável pelo ato (acreditem, mesmo nessas circunstâncias haverá quem questione o crime). Contudo, as situações que fogem da cena clássica de estupro, construída no imaginário da sociedade, são sempre postas em dúvida.

Senão, vejamos: o juiz achou mais razoável acreditar que houve uma conspiração envolvendo a ex-esposa, avó da menina, a mãe da jovem, filha do agressor, e a própria neta para incriminá-lo. Julgou aceitável supor que uma menina de 16 anos tenha aceitado ir ao hotel com o avô para fazer sexo; que a tentativa de suicídio fora forjada; que toda a situação de exposição pela qual a menina passou na escola não tenha significado nada.

Isto é cultura do estupro: a aceitação de que homens podem fazer sexo com quem e quando quiserem, independentemente do consentimento da mulher; a desacreditação e culpabilização da vítima, que se sente desencorajada e com medo de denunciar; o estímulo da sexualização precoce de crianças e adolescentes; a falsa noção de que quem comete estupro é sempre doente ou marginal; a ideia de que consentimento não é importante para que haja uma relação sexual, o que justificaria tantos casos de estupro em que a vítima está desacordada.

Enquanto houver cultura de estupro, não me venham dizer que estupro é visto como crime hediondo. Não é, pelo menos nem todo estupro. Faz parte do dia a dia de grande parte das mulheres, que vivem com medo de ser vítima, e só começaremos a mudar essa realidade quando assumirmos que existe, sim, cultura do estupro.

P.S. A propósito, a jovem, ao saber que o avô está solto, teve uma crise nervosa, vomitou inúmeras vezes e precisou ser hospitalizada. Mas talvez isso também faça parte da encenação que as mulheres da família montaram para incriminar o nobre delegado, certo?



*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"
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NOTA: 


No dia seguinte à publicação deste texto, o Brasil assistiu estarrecido à notícia do estupro coletivo de uma menina de 17 anos. Trinta e três rapazes doparam, estupraram, filmaram e divulgaram o vídeo do crime, em meio a comentários misóginos e machistas.

Não houve quem não se emocionasse e indignasse. Realmente, não há como ficar indiferente a um caso como esse.

No entanto, eu me pergunto: quantas pessoas que se chocaram não se surpreenderiam se soubessem que seus irmãos, pais, primos, filhos e amigos íntimos passam a mão nas meninas nas baladas, "transam" com garotas totalmente bêbadas, mexem com mulheres na rua, não deixam as amigas terminarem as frases, tratam mal as namoradas e colegas, ignoram o que as mulheres pensam e dizem?


Estupro é a ponta do iceberg, o ápice de uma violência contra a mulher que é muito maior, estruturada, diária e contínua, cometida por homens comuns, que fazem parte do nosso círculo social.

Somos uma sociedade que estimula e tolera a violência contra a mulher. É disso que temos de falar.