segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Seu Orlando


Seu Orlando passou a infância e parte da adolescência em Tabira, sertão de Pernambuco. Aos 19 anos, veio para São Paulo ganhar a vida, repetindo a sina de milhares de conterrâneos. Trabalhou por cinquenta anos como feirante, ocupação que lhe rendeu sustento e uma casa modesta na zona leste da cidade.

Afeito ao batente, sua única distração era observar o movimento das ruas do bairro acompanhado de um copo de cachaça e de quem quisesse se sentar à sua mesa no bar do seu Sebastião, baiano de Queimadas e seu vizinho havia anos, nos domingos à tarde.

Homem de poucas palavras e rosto talhado pelo tempo e pelo sol, era econômico nos sorrisos mas generoso nos conselhos, que gostava de dar aos mais jovens.

“A vida é mesmo um troço complicado”, costumava encerrar suas conversas. E se calava, a mão no joelho esquerdo cruzado sobre a perna direita.

Nunca se casara, e afora um sobrinho que viera morar com ele por um tempo para tentar se estabelecer na capital paulista, não tinha familiares na cidade.

Apesar do pouco estudo, gostava de ler, principalmente os livros que lhe remetiam à terra natal. “Tem muita coisa que não entendo, mas o homem precisa de companhia de vez em quando, e quem lê não fica sozinho.”

Tinha uma mania, apenas: andava sempre bem vestido. A calça passada a ferro, a camisa impecavelmente limpa e o chapéu de palha branco conferiam-lhe um ar respeitoso. “Um homem é julgado antes pela aparência, depois vem o caráter.”

Quando lhe pediam opinião sobre os assuntos do coração, respondia: “Não pode amar demais, senão perde o prumo. Amar pouco também não é bom, faz falta a alegria do amor na mocidade e a lembrança dele na velhice. É no acerto da dose que as pessoas se perdem”.

Sobre seus amores, dizia: “Amei muito, muito mesmo. Várias mulheres. Algumas ao mesmo tempo. Mas sempre respeitei, sempre gostei de verdade das minhas companheiras, até das que ficaram pouco. Mulher a gente tem que amar, senão não presta”.

A voz áspera se adoçava quando falava de Diolinda, negra de nariz arrebitado com quem vivera na juventude. “Mulher bonita, aquela. Grandona, forte, não reclamava do trabalho, nada. Mas não aceitava meu jeito, queria que eu assentasse, e eu não podia, nem sou homem de enganar. Então ela foi embora. E quando a mulher tem fibra, tem coragem, ela não olha para trás, bate a porta, decidida. Não me arrependo dos caminhos que segui, mas sofri de ter perdido a morena. Meu único arrependimento. É, a vida é mesmo um troço complicado.”

E se levanta e sai, o andar meio trôpego por causa de um desvio na coluna devido às caixas que carregou e descarregou a vida inteira na feira do Ceagesp.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O coração das mulheres


No seu aniversário de 4 anos, Marina ganhou da avó uma boneca loira que falava e levantava os braços. O irmão gêmeo, Lucas, uma bola de futebol. Na hora do recreio da escola, Lucas joga futebol e brinca de luta, enquanto Marina prefere brincar de “mamãe e filhinha” com as amigas.

A mãe, Ana Paula, afirma: “Lucas não para um minuto. Está sempre inventando alguma coisa, não fica quieto nunca. Marina é mais mocinha, adora brincar de casinha e ver televisão”.

Desde pequenas, as meninas aprendem que devem se comportar e evitar brincadeiras consideradas próprias para os meninos. Só que a inatividade física, mais comuns às crianças do sexo feminino, traz consequências para a vida adulta. [relacionados]

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo IBGE em 2013, revela que 40,8% dos homens acima de 18 anos são insuficientemente ativos. Entre as mulheres da mesma faixa etária, esse número chega a 52,5%.

Cerca de 27% dos homens praticam o nível recomendado de atividade física nos momentos de lazer (150 minutos semanais de atividade física de intensidade leve ou moderada, como caminhada e hidroginástica, ou 75 minutos por semana de atividade física de intensidade vigorosa, como corrida e esportes coletivos), mas apenas 18,4% das mulheres são fisicamente ativas.

A justificativa para a falta da prática de exercícios geralmente é a mesma: pouco tempo disponível. As mulheres hoje em dia trabalham fora, além de cuidarem da casa e dos filhos, atividade que, na maioria das vezes, realizam praticamente sozinhas.

Nas últimas décadas, elas adotaram hábitos que antes eram quase que exclusivos dos homens. O número de mulheres fumantes e que consomem bebidas alcoólicas em excesso aumentou muito.

Assim como o resto da sociedade, elas se alimentam mal, o que significa que consomem poucas frutas e verduras e muito açúcar e gordura, especialmente a saturada.

O resultado do acúmulo de atividades, sedentarismo e maus hábitos é que as mulheres estão mais obesas, com níveis de colesterol e glicemia elevados e, consequentemente, mais doentes.

As doenças crônicas não transmissíves (DCT) como cânceres, diabetes, doenças cardioavasculares, entre outras já são responsáveis por 70% das mortes prematuras (antes dos 70 anos) no Brasil.

De cada 10 mortes por infarto, 6 são de mulheres, segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).

Não há alternativa, nesse caso. As mulheres precisam delegar tarefas, deixar de lado os hábitos nocivos à saúde e se mexer. É necessário arrumar tempo e julgar-se merecedora do cuidado com a saúde.

O alto número de mulheres que morrem de doenças cardiovasculares é mais uma faceta de uma sociedade que permite que elas vivam sobrecarregadas e sem tempo para pensar em si.

*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Mulher não é cavala


O nariz deve ser ligeiramente arrebitado e afilado, permitindo que a distância até o lábio forme um ângulo de 106o. O abdômen não pode ter nenhuma gordura, sua musculatura deve ser hígida. Cintura fina, seios fartos e empinados, coxas grossas, cabelo liso, um tipo definido como “cavala”.

Não é de hoje que se comparam mulheres a animais, mas o padrão de beleza estabelecido atualmente vai além: separa a pessoa em partes, desprezando o todo.

E as mulheres passam a desejar e perseguir cada item, montando um corpo que nada tem de natural e harmônico. Para isso, abusam de lipoaspirações, próteses, botox, preenchimentos e dietas, colocando a saúde em risco.

Não é possível recriminá-las: na ânsia de serem aceitas, elas seguem aquilo que se espera delas, reproduzindo um comportamento que lhes é imposto desde a infância.

Os meios de comunicação, por sua vez, exploram a imagem da mulher perfeita, linda, realizada e feliz. Sabem muito bem que associar beleza e felicidade é uma receita, há tempos, bastante lucrativa.

A indústria de beleza também lucra com o padrão estabelecido. Somos campeões mundiais de cirurgias plásticas estéticas e o segundo maior mercado consumidor de cosméticos do mundo. Procedimentos estéticos e produtos de beleza vendem a ilusão de que poderemos alcançar, desde que tenhamos dinheiro, um padrão de beleza inquestionável.

Será que realmente desejamos que nossas meninas passem a vida perseguindo o corpo perfeito? Que gastem tempo, dinheiro e a saúde atrás de um padrão de beleza que, na maioria das vezes, nada tem a ver com o delas?

Na verdade, vendemos-lhes uma mentira. A felicidade não está no corpo dito perfeito, elas não serão mais amadas caso o conquistem, nem terão uma vida melhor.

Em vez disso, deveríamos ensinar-lhes a viver com saúde, respeitando o próprio corpo e suas características. A autoestima não é algo dado, mas construído por meio de vivências positivas que reforcem o amor próprio e a confiança em si.


É preciso parar de iludi-las, de comparar mulheres a bichos, bonecas, frutas e outros objetos inanimados, de aceitar que elas sejam vendidas aos pedaços para satisfazer uma sociedade machista que, além de não se importar de fato com elas, será a primeira a descartá-las quando elas não mais servirem a seus propósitos.

Encerro aqui com uma frase famosa da escritora francesa Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Resta saber que mulher desejamos que nossas meninas se tornem.



*texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br