segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Serviço doméstico


Carolina Maria de Jesus foi uma escritora mineira, descendente de escravos, que ganhou fama repentina nos anos de 1960, quando foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas. Trabalhou como catadora de papel, criou os filhos sozinha e relatou em seus escritos a dura realidade dos negros e favelados da cidade de São Paulo, onde morou. Seu livro “Quarto de Despejo” foi best seller internacional e a lançou ao sucesso. Morreu aos 62 anos, pobre e esquecida.

No livro “Diário de Bitita”, publicado após sua morte, Carolina descreve assim o trabalho doméstico do início do século passado: “ As mulheres pobres não tinham tempo disponível para cuidar dos seus lares. Às seis da manhã, deviam estar nas casas das patroas para acender o fogo e preparar a refeição matinal. [...] As empregadas eram obrigadas a cozinhar, lavar e passar. Deixavam o trabalho às onze da noite. [...] A comida que sobrava, elas podiam levar para suas casas. E nas suas casas, os seus filhos, que elas chamavam de negrinhos, ficavam acordados esperando mamãe chegar com a comida gostosa das casas ricas.
[...]
“Mas se a cozinheira tinha filha, pobre negrinha. O filho da patroa a utilizaria para o seu noviciado sexual. Meninas que ainda estavam pensando nas bonecas, nas cirandas e cirandinhas eram brutalizadas pelos filhos do senhor Pereira, Moreira, Oliveira e outros porqueiras que vieram do além-mar. [...] No fim de nove meses, a negrinha era mãe de um mulato. [...] Que luta para aquela mãe criar aquele filho!”

Pulemos para 2011. Segundo pesquisa do DIEESE, quase 45% das empregadas domésticas do país não tinham carteira assinada e 61% eram negras. Mais de 90% dos quase 7 milhões de trabalhadores domésticos eram mulheres, a imensa maioria com ensino fundamental incompleto.

O trabalho doméstico é digno como qualquer outro trabalho. Mas não podemos negar que a maioria das empregadas não escolhe a profissão e muitas suportam caladas os abusos que o caráter privado do ambiente doméstico esconde por medo de ser demitidas. Muitas dessas mulheres sustentam sozinhas os filhos. Portanto, não é possível comparar o serviço doméstico com outras profissões que trazem consigo direitos constituídos há tempos e não têm raízes escravocratas e patriarcais.

Não faz parte da cultura brasileira que os brancos de classes mais abastadas executem as tarefas domésticas. Com a oferta de mão-de-obra feminina, negra e barata, acostumamo-nos com empregadas que trabalham o dia inteiro e terminam a noite em quartinhos mal ventilados e apertados, longe dos filhos e de qualquer perspectiva de melhores condições de vida. Caladas, suportam todo tipo de humilhação dos patrões para não perder o emprego.

Essa é a realidade do serviço doméstico no Brasil, segundo estudiosos, pesquisadores e empregados. A famosa “PEC das domésticas”, que entrou em vigor este ano, trouxe avanços ao obrigar os empregadores a respeitar uma série de direitos das trabalhadoras. Contudo, não podemos esquecer em que bases históricas o serviço doméstico foi constituído. Com a regulamentação da profissão, esperamos que esse cenário mude. No entanto, para isso, também é preciso que nós, brancos das classes sociais mais favorecidas, reconheçamos e abdiquemos de alguns dos privilégios de que desfrutamos há séculos.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Desigualdade social e gravidez na adolescência


As meninas que engravidam na adolescência são, na maioria dos casos, pobres e têm menos escolaridade, segundo dados do IBGE.

O número de meninas adolescentes com filhos diminuiu na última década. Mesmo assim, continua alto. Os dados são da Síntese de Indicadores Sociais 2015, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no último dia 4/12.

Em 2004, de cada mil mulheres de 15 a 19 anos, 78,8 tinham ao menos um filho, o que significava 18,4% da taxa de fecundidade total. Em 2014, esse número caiu para 60,5, representando 17,4% da taxa de fecundidade total. Portanto, de cada cinco partos, quase um é realizado em uma mãe adolescente.

Apesar da queda, o número de adolescentes com filhos no Brasil ainda é bem maior do que na Europa (16,2 por mil meninas) e nos EUA (28,3 por mil), mas próximo do nível observado na América Latina e Caribe (66,5 por mil) e mais baixo que o da África (98,5 por mil).

Entre as jovens dessa faixa etária que não tinham filhos em 2014, 40,4% residiam na região Sudeste e 56,3% se declaravam pretas ou pardas. A média de anos de estudo era de 8,9 anos; 73,7% ainda estudavam ; e 14,7% não estudavam nem trabalhavam.

Das meninas que tinham ao menos um filho, 35,8% moravam no Nordeste e 69% se declaravam pretas ou pardas. A média de escolaridade era de 7,7 anos (85% não completaram o ensino médio); somente 20,1 ainda estudavam; 59,7% não estudavam nem trabalhavam; e 92,5% cuidavam dos afazeres domésticos por uma média de 27,1 horas semanais.

A taxa de adolescentes com filhos mostra uma faceta conhecida dos brasileiros: a desigualdade social. Os dados revelam que a maioria das mães adolescentes tem poucos anos de escolaridade, é negra e vive nas regiões menos economicamente desenvolvidas do país.

São vários os fatores que levam as meninas a engravidar em uma fase da vida em que deveriam se preocupar com os estudos e em aproveitar a juventude. Muitas têm conhecimento acerca dos métodos contraceptivos, mas ignoram como utilizá-los corretamente. Assim, acabam usando o anticoncepcional de forma errada, o que torna sua eficácia reduzida.

Há regiões em que o acesso a esses métodos é precário. Nem todo posto de saúde oferece contraceptivos, entre eles a pílula do dia seguinte. Com acesso limitado, menos informações e a dificuldade comum às meninas muito novas em aderir a métodos que exigem regularidade de uso, a contracepção, muitas vezes, falha.

Essas adolescentes também têm baixa perspectiva em relação à escolaridade e à futura inserção no mercado de trabalho. Com isso, o papel social que lhes sobra é o de mãe.

Como fazer para essas adolescentes não terem filhos tão cedo e, com isso, traçarem um caminho que as afaste completamente da escola e de uma vida profissional com expectativas melhores?

Nossa sociedade conhece a resposta, embora não nos empenhemos em aplicá-la da mesma forma que fazemos com as meninas das classes mais favorecidas.

Em primeiro lugar, oferecemos às meninas mais ricas uma educação de melhor qualidade, que lhes permite criar expectativas em relação ao futuro. Assim, sonhos e planos como viajar, entrar em uma faculdade, conhecer outras culturas e pessoas, aprender novas habilidades e montar a própria casa antecedem o desejo da maternidade.

Quando essas meninas entram em idade fértil, conversamos com elas sobre sexo e as levamos ao ginecologista, que passa a acompanhá-las e orientá-las na escolha do melhor método anticoncepcional, a que certamente terão acesso.

Se os métodos por acaso falharem, pagamos-lhes o aborto em clínicas onde elas podem contar com médicos que lhes garantam segurança. Para as mulheres de classe social mais alta, a criminalização do aborto pode ser resolvida com dinheiro.

Elas não se sentem socialmente pressionadas a engravidar; suas amigas não têm filhos e a elas estão destinados vários papéis sociais que não os de mãe.

Com um ou mais filhos nos braços, as meninas de classes sociais mais baixas que mal saíram da infância não conseguem dar seguimento aos estudos, tampouco melhorar as condições de vida da família. Acabam destinadas ao serviço doméstico, sem que essa tenha sido necessariamente sua escolha.

Para as mulheres mais ricas, a maternidade é, na maioria das vezes, uma escolha e não um destino do qual não se pode fugir. Por que aceitamos condenar as mais pobres a uma realidade que evitamos para nossas filhas?

Todos deveriam ter direito de exercer sua sexualidade e decidir quando e quantos filhos desejam ter, e contar com o acesso a métodos que lhe assegurassem esse direito.

Uma sociedade que nega a garantia dos direitos reprodutivos a todas as mulheres em idade fértil, sem exceção, deveria no mínimo envergonhar-se.


*Texto originalmente publicado no site drauziovarella.com.br