quarta-feira, 29 de julho de 2015

A carta


Faz dois meses que você se foi devagarinho, nenhum movimento brusco, sem dizer palavra. Tão diferente da primeira vez, quando arrombou a porta, ocupou os poros, aboletou-se onde não podia.


E me deixou ali. Não chorei nem gritei, meu amor não é de arroubos. Restou de nós apenas a certeza de que, na verdade, você nunca entrou.


Acho que nunca soube a hora exata de sair de cena. Mesmo sem querer, insisto, demoro-me mais do que devia. Assim, ficou para você a incumbência de nos deixar. E eu, que sempre preferi o movimento à calmaria, talvez até goste da liberdade que sua ausência me trará.


Suas frases feitas e seu riso ainda ecoam em silêncio, enchem o quarto. Difícil não escutá-los. Do seu rosto, todavia, tenho poucas lembranças. Incrível como a distância traz o esquecimento, embora acentue a doçura dos detalhes: sua mão pesada, a boca macia, os olhos profundos e, ao mesmo tempo, tão incompreensíveis.


Minha pretensão nunca foi atê-lo a mim; sempre o quis livre. Não soube, no entanto, aceitar a solidão das suas entradas e saídas despretensiosas, que me alegravam a superfície com a mesma intensidade com que me feriam. 


Não vai ser difícil caminhar sem você. Sempre segui sozinha, afinal. Talvez a leveza de não ter de carregar nossa imagem improvável torne meu caminho mais sereno.


Sinto não ter dado conta de nós dois. Nunca foi minha intenção amá-lo. Levo comigo a noção exata de que você nunca sonhou meus desejos e o pouco que pude juntar de nós. E a sensação de que, apesar do meu esforço, lhe deixei quase nada.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Iscas

Outro dia, na página deste blog no FB, disse que as baladas que cobram meia entrada de mulheres o fazem não apenas porque elas consomem menos, mas porque usam as mulheres como ‘iscas’ para atrair homens. Muita gente não entendeu, então resolvi explicar.

Há alguns anos fui a uma dessas festas em que mulheres não pagavam consumação até a meia-noite. Deparei-me com um cenário deprimente: dezenas de meninas, algumas certamente menores de idade ingerindo toda a bebida alcóolica que conseguissem. Logo depois, os homens começaram a chegar e encontraram várias meninas bêbadas e alegres. Não devem ter achado ruim, certo?

O hábito de embriagar a mulher para conseguir dela vantagens sexuais é antigo. O cinema eternizou a célebre cena em que o cavalheiro encontra a moça desconhecida e solitária em um bar e resolve lhe pagar uma bebida.

Oferecer bebidas ou preços mais convidativos e entradas gratuitas, selecionar moças bonitas em filas de boates ou criar ‘promoções’ para atrair mulheres são apenas uma variação desse costume que as festas universitárias e as baladas atuais aprimoraram. Não são raros os casos de estupros e abusos nessas festas, muitas vezes praticados pelos próprios colegas da vítima embriagada (aqui faço um breve parênteses apenas para que não haja dúvida: álcool não é desculpa para estupro, esteja a vítima ou o agressor bêbado).

As mulheres são ensinadas a se respeitar, a se dar ‘valor’, o que significa, em outras palavras, ter contato íntimo apenas com quem conhecem bem a ponto de estabelecerem um relacionamento. Toda mulher que resolve agir de modo diferente tem de quebrar uma série de regras e conceitos pré-concebidos que lhe foram empurrados durante anos. Acredite, não é algo fácil. O álcool, muitas vezes, funciona como um empurrão extra para a “liberdade”.

O problema é que essa liberdade é falsa. A verdadeira liberdade sexual implica saber impor suas vontades, arcar com as responsabilidades de seus atos, ter autoconfiança e autoestima elevadas. Poucas mulheres podem se dar ao luxo de se considerar de fato livres nesse sentido. A maioria não o é.

O fato de você ser ou conhecer uma mulher que entre na balada sabendo direitinho o quê e como quer não significa que seja assim para todas. As mulheres ainda são sexualmente oprimidas, e a liberdade de fato é privilégio de poucas, muito poucas. Portanto, é hora de parar de olhar para o próprio umbigo e entender de uma vez por todas que a sociedade vende uma falsa ideia de que as mulheres são livres para usufruir dos benefícios, inclusive financeiros, dessa pretensa liberdade.

Não se iludam: para exercer a própria sexualidade sem preconceitos e com segurança é preciso muito trabalho, muito questionamento, muito autoconhecimento, muita segurança. Caso contrário ela é falsa. E a pretensa liberdade é, muitas vezes, pior e mais perigosa que sua ausência.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Opinião

Quando uma cidade precisa de uma ponte, a prefeitura contrata engenheiros para que executem a obra. Afinal, são eles os especialistas em construção civil. Já quando um parente desenvolve câncer, procuramos um oncologista, o médico especialista em tratar esse tipo de doença. Não nos metemos nas decisões técnicas, embora possamos nos informar e participar delas.

Ninguém diz que acha melhor que a ponte tenha uma envergadura de 20o graus ou que devemos aumentar a dose de determinado quimioterápico, pois pressupõe-se que os profissionais tenham conhecimento e experiência para decidir.

A situação muda de figura quando tratamos de questões que envolvam a sociedade e as ciências humanas. Hoje, por exemplo, a Câmara dos Deputados irá votar a redução da maioridade penal. Muitas pessoas são a favor da redução sem sequer ouvir quem realmente entende do assunto.

A mesma postura vale para a descriminalização do aborto ou a escolha da melhor política de drogas a ser adotada, entre outras questões sociais. Todos dão palpite, poucos consideram aspectos fora da sua opinião estritamente pessoal.

Acontece que essas decisões também envolvem questões técnicas e específicas, como a construção da ponte e o tratamento do câncer. Há profissionais que estudam, debruçam-se sobre a realidade com que trabalham, avaliam pesquisas e dados estatísticos, somam anos de experiência teórica e empírica antes de assumir uma posição sobre determinada questão.

Outros, ainda, não possuem conhecimento teórico, mas vivem e conhecem bem a realidade daqueles a quem determinada decisão vai afetar. Esses também devem ser ouvidos com atenção especial, pois nem todo conhecimento teórico puro dá conta da complexidade do ser humano. 

Nem sempre conseguimos ser imparciais e fazer as melhores escolhas, para construir uma sociedade menos desigual e, portanto, mais justa. As opiniões particulares são, muitas vezes, pouco racionais. Envolvem emoção, credos, valores e experiências individuais. Todos têm direito à opinião, sobre todas as questões. Achar que ela é sempre relevante é o problema.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"