quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A violência doméstica não é assunto privado


Imagine que você vá a um chá de bebê em que haja trinta mulheres. Agora suponha que dez das convidadas tenham sido ou serão vítimas de violência por parte dos parceiros.

Parece absurdo? Pois, segundo pesquisa realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e divulgada em uma série de estudos pela revista médica The Lancet, um terço das mulheres sofre esse tipo de violência no mundo todo.

A pesquisa aponta ainda que de 100 a 140 milhões de mulheres e meninas foram vítimas de mutilações genitais que incluem a remoção parcial ou total da genitália externa feminina, prática comum em alguns países, principalmente da África e da Ásia. Setenta milhões de meninas se casaram antes dos 18 anos, a maioria contra sua vontade, em várias regiões do mundo.

A violência contra mulheres e meninas não é realidade apenas dos países pobres. Também faz parte do dia a dia de países ricos e é tolerada, em níveis diferentes, no mundo.

Apesar de a Organização das Nações Unidas (ONU) ter reivindicado maior investimento dos países visando a reduzir a discriminação de gênero, a violência contra a mulher é tão comum que se tornou questão de saúde pública.

Os motivos que levam a ela são vários, entre eles: práticas machistas que fazem com que homens considerem a mulher sua propriedade, acesso restrito das mulheres à saúde e educação, baixo índice de participação feminina na política, estruturas discriminatórias de políticas e instituições.

Mas será impossível reduzir os altos índices de violência de gênero ou teremos de aceitá-los e conviver com eles, como vimos fazendo?

A primeira medida a ser adotada pelos países, segundo os pesquisadores, é reconhecer como prioridade a necessidade de combater a violência contra mulheres e meninas e assumir que ela impede o desenvolvimento das sociedades em todos os âmbitos. Para isso, é necessário o investimento de recursos financeiros em intervenções e programas eficazes no combate e na prevenção da violência.

É importante, também, mudar as leis e políticas que ajudam a perpetuar a violência. O modo como sociedades do mundo todo, amparadas em leis perversas, aceitam esse tipo de violência é deplorável.

São necessárias políticas de intervenção nas áreas da saúde, educação e segurança para evitar a violência e, quando não isso não for possível, acolher a mulher de fato.

Hoje, no Brasil, sabemos que há diversos problemas no acolhimento à vítima de violência de gênero, apesar dos avanços em políticas e leis relacionadas à violência contra a mulher. Os serviços de saúde e a polícia não estão preparados para receber as vítimas. A Justiça tampouco encaminha os casos com a competência e rapidez que se espera em situações assim.

A violência contra a mulher não é um problema privado que deve ser resolvido em casa e empurrado para debaixo do tapete da sala. É preciso denunciá-la, pois somos todos responsáveis por ela.


*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Falta de libido


A noite chegou, você terminou todos seus afazeres, as crianças dormem tranquilamente e ao seu lado está o homem que você ama, cheio de desejo. Porém, a única coisa que você consegue pensar é em virar para o lado e dormir.

Quem já passou por isso precisa saber que não está sozinha. Pesquisa divulgada no ano passado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo por meio do Cresex (Centro de Referência e Especialização em Sexologia) do Hospital Pérola Byington revela que 48,5% das mulheres que procuram ajuda médica por conta de disfunções sexuais sofrem de falta ou diminuição do desejo sexual, dor durante as relações sexuais ou dificuldade para atingir o orgasmo. A pesquisa com 455 mulheres também mostrou que apenas 13% dos casos têm origem orgânica, a imensa minoria, portanto.

Descontados os problemas físicos que podem levar às disfunções sexuais, podemos pensar em alguns aspectos socioculturais que afetam a sexualidade feminina.

Em primeiro lugar, precisamos considerar que as meninas aprendem a repreender a sexualidade desde pequenas. Enquanto aceitamos e até incentivamos a masturbação e a curiosidade sexual masculina, ensinamos as meninas a se resguardar, a não expressar sua sexualidade. Elas, portanto, se tornam mulheres que desconhecem o próprio corpo e todo o prazer que ele pode lhes proporcionar.

Depois que cresce, a mulher é incentivada a se casar e procriar. Dentro da família assume, na maioria das vezes, o papel de cuidadora, responsável pelo bem-estar de todos. Exatamente como nossas avós, com a diferença que muitas ainda têm de trabalhar fora.

A mulher, cansada, passa a enxergar o parceiro que costumava atrai-la tempos atrás como parte das suas obrigações. Uma visão nada sexual.

Os homens também em geral têm pouca paciência e habilidade para despertar o prazer feminino. Muitas vezes parecem esquecer que a relação sexual envolve, nesse caso, duas pessoas e que uma é bem diferente deles.

As revistas e programas femininos só aumentam a sensação de culpa ao dizerem que é preciso ser criativa para “apimentar” a relação. Como se para ser criativo não fosse preciso sentir desejo sexual e não vice-versa.

Como abrir espaço para o desejo? Antes de tudo, é preciso se livrar da culpa e sentir-se merecedora do prazer sexual. É necessário dissociar a relação conjugal da vida cotidiana, tentar ver o homem como parceiro de fato na busca pelo que lhe agrada e, se preciso, buscar ajuda profissional.

Assumir toda a responsabilidade por uma vida sexual pouco satisfatória é supor, erroneamente, que o sexo é algo dissociado das outras áreas da vida.

*Texto orginalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A cultura do estupro


Em 2013 houve 50.320 estupros registrados no Brasil, cerca de 25 casos para cada 100 mil habitantes. Os dados são do 8o Anuário Nacional de Segurança Pública, divulgados no último dia 11.

Pesquisa do Ministério da Justiça afirma que apenas 7% a 8% dos casos de estupro são denunciados no Brasil. Assim, apesar de os números registrados impressionarem, eles mostram algo ainda mais grave: a subnotificação do estupro.

Na Suécia, houve 63 casos de estupro para cada 100 mil habitantes em 2010, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas). Mais casos que o Brasil, portanto.

Contudo, será que a Suécia, cujo índice de desenvolvimento é um dos mais altos do mundo, tem mais casos de estupro que o Brasil?

Não exatamente. O que ocorre é que o país escandinavo incentiva as mulheres a denunciar esse tipo de crime ao adotar, entre outras medidas, o registro de cada estupro como uma ocorrência. Assim, se uma mesma mulher for estuprada trinta vezes pelo marido, serão registradas trinta ocorrências e não apenas uma, como no Brasil.

Tanto o alto número de casos registrados quanto os subnotificados revelam uma triste realidade: o Brasil tolera e incentiva o estupro a ponto de podermos afirmar que o crime faz parte da nossa cultura.

Por meio da culpabilização da vítima, estimulamos que as mulheres estupradas se escondam e acabem protegendo seus algozes. Afinal, é comum elas ouvirem de policias e da própria família que estavam embriagadas, usavam roupas curtas e apertadas, que andavam sozinhas à noite ou não deixaram claro que não desejavam o ato sexual. A vítima, portanto, sente medo e vergonha de denunciar.

A sexualização da mulher como objeto é outro fator que estimula o alto número de casos. Desde crianças aprendemos que o corpo da mulher é um objeto que pode ser consumido como qualquer outro. O menino cresce acreditando nisso e, o pior, a menina também.

O estupro tornou-se, portanto, tão banal que passou a ser aceito e tolerado. Basta ver a pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgada no primeiro semestre deste ano e que revela, após correção dos dados, que 26% dos entrevistados acreditam que uma mulher usando roupa que revele o corpo merece ser atacada.

É preciso que fique claro: nenhuma mulher merece ser estuprada. Ela é dona do seu corpo e a única que pode dele dispor. E a culpa nunca é da vítima, independentemente da sua conduta. Esses são pressupostos básicos para que o crime de estupro deixe de ser parte da nossa cultura.

*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O acinte dos outros

Cena I: dois rapazes de cerca de 20 anos se beijam em um trem do metrô de São Paulo. Outros passageiros se sentem incomodados e os mandam sair sob xingamentos. O casal resolve ignorar os insultos e é colocado para fora do vagão a socos e pontapés.

Cena II: um ator famoso e casado beija outra moça, e um paparazzo, esse tipo que se tornou tão comum à fauna humana, flagra o ato, que sai estampado em várias revistas de fofoca, causando indignação nas redes sociais. A mulher, também famosa, não só perdoa o marido como manda que cada um cuide de si. Sua reação é considerada uma afronta por aqueles que desejavam vê-la, aos prantos, expulsar o marido infiel de casa.

Sempre me perguntei por que as pessoas se incomodam tanto com a vida dos outros. O que interessa se a vizinha gosta de meninas ou se o filho da moça que trabalha na sua seção tem cinco furos na orelha e dez tatuagens no braço? Em que o modo como os outros levam a vida altera a sua?

Tenho uma teoria. O comportamento diferente incomoda, agride porque obriga as pessoas a confrontar o fato de que seguem normas e condutas sem nem ao menos saberem por quê.

Elas se aborrecem com aqueles que ousam não seguir ao pé da letra as regras que a sociedade inventou para si.

Qual outra desculpa para alguém se sentir mal diante de dois jovens trocando carinho em um trem? Ou para julgar e recriminar um casal que nem ao menos faz parte do seu círculo de amigos?

Alguns não aceitam que os comportamentos e valores adotados por eles sejam ignorados ou menosprezados e tentam impô-los aos outros. Como eles acreditam e seguem esses valores e preceitos, ninguém pode ousar negá-los publicamente. Se o fizerem, que seja escondido, pelo menos.

A coragem de quem resolve não viver como a maioria e ainda tem o atrevimento de assumir sua posição é um desplante para aqueles que preferem a hipocrisia.


Porém, se há algo a ser admirado na humanidade é a diversidade. Somos diferentes, e ainda bem. E, ao contrário do que fazem as pessoas que julgam e recriminam aqueles que pensam de outro modo, devíamos aplaudir quem tem coragem de ser o que é.

sábado, 8 de novembro de 2014

O preço da magreza

Carolina tem 10 anos e um sonho: perder a gordura da barriga que só ela consegue ver. Sua mãe, Paula, de 37 anos, tenta emagrecer desde os 14 e nunca atingiu o peso desejado, apesar dos esforços que envolvem dieta, exercícios físicos e tratamentos estéticos.

Como Carolina, 77% das jovens de 10 a 24 anos entrevistas pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo têm propensão a desenvolver algum tipo de distúrbio alimentar, como anorexia e bulimia. Entre essas garotas, 39% estavam acima do peso e 46% acreditavam que mulheres magras são mais felizes.

Os distúrbios alimentares são problemas extremamente graves. A taxa de mortalidade da anorexia, por exemplo, é de 15% a 20%. Cerca de 90% dos pacientes são do sexo feminino.

A mulher que deseja perder peso quase nunca o faz por motivos de saúde. O que as move é a promessa de uma vida melhor. Poder vestir a roupa que quiser, arrumar um namorado, ser aceita e invejada pelas amigas, não ter que esconder o corpo na praia. A felicidade, portanto.

Mas por que tantas meninas e mulheres adultas acreditam que elas serão mais felizes se forem magras?

Basta abrir uma revista ou ligar a televisão para compreender a pressão sob a qual as mulheres vivem. Nos anúncios, mulheres lindas vestem roupas maravilhosas que não serviriam na maioria das brasileiras. Nas novelas e programas de TV, as mulheres fortes, bem-sucedidas e realizadas têm algo em comum: são magras.

As meninas crescem vendo as mães dando a vida para se encaixar em um padrão de beleza totalmente distante da realidade, travando uma luta inglória que quase sempre resulta em frustração.

Quando estão acima do peso, elas sofrem preconceito na escola e se esforçam para conseguir ser aceitas. Aprendem, desde muito novas, que o mais importante é ter um corpo dentro dos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade. Mais do que tudo, aprendem a menosprezar as diferenças.

Mas, como sabemos, não é nada fácil tentar adequar-se a um padrão de beleza que não é o seu. E muitas mulheres pagam com a própria saúde para chegar ao corpo supostamente perfeito.

No entanto, se por um lado a sociedade lucra com o ideal da magreza, por outro tem de lidar com o número cada vez maior de mulheres com distúrbios alimentares e outros problemas psiquiátricos associados à busca por um ideal de beleza fantasioso e irreal.

Nossas meninas estão crescendo insatisfeitas e se transformando em mulheres infelizes porque atribuem a felicidade a um padrão inatingível para a maioria. Essa busca mal-sucedida afeta a autoestima e gera insegurança em várias áreas. Sem se darem conta, elas renunciam à própria liberdade.

Enquanto não aceitarmos e respeitarmos as diferenças físicas e de comportamento viveremos frustradas, esperando a felicidade que nunca vem.

*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Sábados de manhã

Eu e minha irmã mais nova já sabíamos: sábados e, muitas vezes, domingos de manhã eram reservados para as visitas aos pacientes do meu pai internados ou acamados. 

Separado e com duas filhas pequenas, ele não tinha alternativa a não ser nos levar a essas visitas.

Enquanto ele examinava os pacientes, ficávamos brincando no estacionamento ou aos cuidados de alguma enfermeira gentil que nos levava passear pela ala pediátrica. Não raro, íamos à casa ou ao quarto dos pacientes.

Foi assim que tomei contato com a aids, nos anos 1980.
Naqueles dias obscuros, era comum ouvir que o vírus podia ser transmitido por meio de contato social. Ciente do absurdo dessa premissa, meu pai nunca nos permitiu ter medo ou evitar os pacientes. Aliás, isso não era sequer cogitado.

Os doentes e seus familiares nos recebiam em casa ou nos quartos de hospital com tanta simpatia que passamos a pedir para acompanhá-lo nas visitas.

Sempre havia um presente, um pedaço de bolo, um livro, um agrado à nossa espera. Pacientes fisicamente debilitados e abatidos nos recebiam com um sorriso terno e amoroso.

Perdi a conta de quantas vezes recebi beijos, abraços e elogios generosos de gente que eu nem sequer conhecia.

Eu não entendia à época por que essas pessoas eram tão mais receptivas do que as que sofriam de outras doenças.

Aos poucos fui compreendendo que aqueles pacientes também eram vítimas de outra doença: o preconceito.

Ao revelar que sofriam de aids, tinham de engolir os cochichos e olhares de reprovação, isso quando não eram demitidos do trabalho, expulsos de ambientes e abandonados por amigos e familiares. Como, então, não se surpreender com um médico que, além de visitá-los em casa, levava duas filhas pequenas que se sentavam na cama deles para ver televisão?

Essa experiência me deixou marcas profundas. Aprendi que o preconceito é a expressão do lado mais detestável do ser humano. E é abominável.


Também entendi que, felizmente, ele não é intrínseco. A gente aprende a ser preconceituoso, assim como a não ser. 

E isso me faz ainda ter alguma esperança na humanidade.