quinta-feira, 28 de maio de 2015

Medo feminino



Quando eu era criança, morria de medo de ser estuprada. No meu imaginário infantil, o estuprador era um homem mau, desconhecido, que me aguardaria em um local escuro portando uma arma e me agarraria à força. Graças a esse perigo eu não deveria andar sozinha na rua à noite nem abrir a porta para estranhos, tampouco usar roupas que pudessem provocar o criminoso.

Mais tarde, fiquei surpresa ao descobrir que a maioria dos estupros não é cometida por nenhum monstro, nenhum estranho, mas sim por conhecidos da vítima, muitas vezes em local onde ela se sente segura.

Segundo a pesquisa “Violência contra a mulher e impacto sobre a saúde sexual e reprodutiva”, conduzida pelo dr. Jefferson Drezett, diretor do Ambulatório de Violência Sexual do Hospital Pérola Byington (SP), 60% das vítimas conhecem seus estupradores, que são seus vizinhos, conhecidos, familiares e parceiros.

Em uma coisa, porém, eu estava certa: eu podia ser a vítima. Qualquer mulher pode. E toda mulher cresce com esse medo, que nasce desde muito cedo e nos acompanha vida afora.

Um caso que chocou São Paulo recentemente ilustra bem os dados: uma menina de 12 anos foi violentada dentro da escola em que estudava por colegas. Um perfil bem diferente do estuprador dos filmes e dos pesadelos da maioria das meninas e mulheres.

Se por uma lado um caso como esse nos comove, por outro devemos assumir que a sociedade não sabe lidar com o estupro, embora ele faça parte da nossa cultura. Não sabemos evitá-lo, não sabemos atender as vítimas, a quem costumamos culpar, não oferecemos os mínimos cuidados e respeito às milhares de mulheres submetidas a essa violência.

Para começarmos a coibir esse crime hediondo precisamos primeiro deixar de tolerá-lo. Ele não pode mais ser aceito em nenhuma hipótese. Nunca, nem se a mulher for casada com o estuprador, nem que esteja bêbada, nem que use sei lá que roupa.

Entender que vítima é sempre vítima, e que portanto merece ser tratada e amparada como tal, e que o estuprador é um criminoso, independentemente de quem seja, é o primeiro passo para deixarmos de relativizar o estupro.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Aborto legal


A criminalização do aborto divide o mundo em dois: a maioria dos países do hemisfério norte não trata o aborto como crime, e tem leis mais liberais em relação ao procedimento. Por outro lado, as leis de quase todos os países do hemisfério sul criminalizam o aborto na imensa maioria dos casos.

As leis restritivas, além de não impedirem que as mulheres abortem, tornam o aborto inseguro. Não à toa, 98% das 43 mil mortes anuais por abortamento no mundo ocorrem nos países em que o procedimento é considerado crime e é, por consequência, realizado de modo inseguro, sem as condições necessárias.

No Brasil, o aborto é permitido pelo Código Penal em duas situações: em caso de estupro e quando há risco de morte para a gestante. A partir de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) deixou de considerar crime o abortamento em casos de anomalias fetais graves e incompatíveis com a vida extrauterina.

O médico Jefferson Drezett, diretor do Núcleo de Violência Sexual e Abortamento Legal do Hospital Pérola Byington (SP), apresentou um panorama do aborto legal, realizado nos casos previstos em lei, no seminário “A mídia e o aborto”, organizado pelo Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA) em março deste ano (assista ao vídeo aqui). O cenário não é nada animador.

Em 2013, foi sancionada a lei que obriga os hospitais do SUS a prestar atendimento emergencial, integral e interdisciplinar às vítimas de violência sexual. Apesar de não mencionar a palavra ‘aborto’, a lei garante os cuidados das lesões físicas, o amparo social e psicológico, a profilaxia de doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez, entre outros direitos. Em último caso, a mulher pode interromper a gravidez forçada.

A realidade, no entanto, não é bem assim. Nem todos os hospitais garantem acesso a serviços de saúde voltados às vítimas de estupro, e poucos oferecem o abortamento seguro, realizado em condições de higiene e segurança e por equipe de saúde, nos casos previstos na lei.

Prova disso é que o hospital Pérola Byington, referência em atendimento de casos de violência sexual no país, já atendeu, desde sua fundação em 1994, mais de 35 mil casos de estupro, grande parte encaminhada de outros municípios, que não têm condições de atender as vítimas.

Em momento em que tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei que visa a descriminalização do aborto, como garantir o abortamento legal e seguro nos casos previstos pela lei se os serviços de saúde do país sequer estão preparados para atender as vítimas de violência sexual?

Esse parece ser o desafio da maioria dos serviços de saúde e dos governos, que falham ao deixar a vítima de crime tão bárbaro à mercê da própria sorte.


*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Amor romântico


A sociedade nos ensina que a felicidade suprema reside em encontrar um par amoroso a quem devemos amar incondicionalmente, por toda a eternidade. Essa pessoa, de preferência do sexo oposto, nos trará a plenitude e tudo passará a fazer sentido, prometem. E nós acreditamos.

A ideia de amor romântico, que nos faz crer que a salvação está no outro, traz, antes de tudo, frustração, pois aprendemos na marra e à custa de muita decepção que ninguém pode suprir todas as nossas necessidades e nos trazer realização.

Sua maior vítima somos nós, mulheres, que desde a infância somos bombardeadas por histórias de princesas apaixonadas e de moças que se mantiveram virgens para seus amados, pela indústria do casamento, que nos vende sonhos personificados em vestidos de noiva, por exemplos e mais exemplos de mulheres que aguardam, entediadas, pelo grande amor.

Só que nem toda mulher busca o amor romântico como forma de realização pessoal. Aliás, um número cada vez maior de mulheres abomina a ideia de depositar a responsabilidade por seu desejo, sonhos e felicidade na mão de outra pessoa que não seja ela mesma. Porque a verdade é que os encontros amorosos podem ser incríveis, mas o outro não nos realiza, não nos define, não nos basta. Afinal, a vida nos reserva mais do que uma história de amor perfeita; ela guarda em si e antes de tudo uma imensidão de possibilidades.

*Texto publicado originalmente na página "Quebrando o Tabu"

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Sedentarismo feminino



A pesquisa Vigitel (Vigilância dos Fatores de Risco e Proteção para Doenças), divulgada em abril deste ano pelo Ministério da Saúde, revelou alguns dados sobre a saúde dos brasileiros, entre eles que o número de pessoas acima do peso aumentou 23% nos últimos 9 anos. Isso se deve principalmente aos maus hábitos alimentares e ao sedentarismo, considerado o quarto principal fator de risco de mortalidade global.

Apesar de ainda muito sedentários, os brasileiros se exercitam mais hoje do que há 6 anos: a pesquisa apontou aumento de 18% no número de pessoas que praticam a quantidade de exercícios físico recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), 150 minutos por semana.

No entanto, ainda segundo a pesquisa, os homens são mais ativos fisicamente do que as mulheres: mais de 40% se exercitam durante seu tempo livre ante 30% das mulheres. Sabe-se, contudo, que as mulheres se alimentam melhor e procuram mais os médicos do que os homens, o que nos faz pressupor que elas se preocupam mais com a saúde.

Se é assim, por que, então, elas são mais sedentárias?

Embora na infância meninos e meninas sejam fisicamente ativos e estimulados a brincar, logo a menina aprende a restringir suas atividades, pois subir em árvore, jogar bola, lutar e correr são “brincadeiras de moleque”. Os exercícios físicos ficam, portanto, limitados às academias que poucas têm condições financeiras ou tempo para frequentar.

Outra pesquisa, denominada Trabalho remunerado e trabalho doméstico – uma tensão permanente e realizada pela organização recifense SOS Corpo – Instituo Feminista pela Democracia e pelos institutos Data Popular e Patrícia Galvão, revelou que 75% das 800 mulheres consultadas afirmavam enfrentar uma rotina exaustiva, enquanto 18% não sofriam desse problema e 7% não sabiam dizer.

Dentre as entrevistadas, 98% reportaram que além de trabalhar, ainda precisavam cuidar da casa. Dessas, 71% não recebiam ajuda masculina. A falta de tempo foi motivo de reclamação para 68% das consultadas, enquanto 58% declararam não ter tempo para cuidar de si. De cada 10 entrevistas, 6 dormiam menos de 8 horas por dia.

Além de hoje em dia boa parte das mulheres trabalhar fora, ainda cabe a elas os cuidados com a casa, com a alimentação da família e com os filhos.

Realmente, é difícil imaginar que uma mulher que trabalhe cerca de 8 horas por dia, sem contar o tempo gasto nos deslocamentos entre a casa e o trabalho, cuide dos afazeres domésticos e dos filhos ainda tenha tempo para praticar exercício físico.

O cenário, contudo, está mudando: cada vez mais as mulheres cobram a presença masculina na divisão de tarefas. Se antes os homens eram responsáveis pelo sustento da família, hoje essa incumbência também cabe à mulher. Nada mais justo, portanto, que eles passem a dividir os cuidados com a casa e com os filhos, permitindo que elas tenham mais tempo para cuidar de si.

Até quando permitiremos que a mulher negligencie sua saúde física e mental em nome dos outros apenas para não atrapalharmos a ordem patriarcal que concede aos homens o direito de se abster dos cuidados com a casa e os filhos?

*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br