quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Mães meninas

As meninas mais pobres têm maior risco de engravidar do que as mais ricas. É o que revela a pesquisa Pense 2015 (IBGE), feita com estudantes do 9° ano do ensino fundamental de todo o país.

Os dados mostram que 27,5% (723,5 mil) dos alunos do 9° ano, que têm em média 14 anos de idade, já mantiveram relações sexuais: 36% dos meninos e 19,5% das meninas.

Das meninas que fizeram sexo, 9% declararam ter engravidado alguma vez, o que representa 23.620 meninas. Dessas, a maioria cursava a rede pública (9,4%). Apenas 3,5% das meninas que já engravidaram frequentavam a rede privada de ensino.

Mas por que as meninas de classes sociais menos favorecidas ainda engravidam mais do que as de classe média e ricas, se quase 90% dos alunos afirmaram receber informações sobre gravidez e saúde sexual? A resposta é simples: informação por si só não é suficiente.


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Em primeiro lugar, pensemos apenas no que oferecemos às meninas e deixemos os rapazes de lado, pois é sabido que os homens, tanto os mais ricos quanto os mais pobres, em geral se importam pouco com a contracepção, embora essa devesse ser tarefa de todos, homens e mulheres.

Proporcionamos às mais ricas uma educação de melhor qualidade, que lhes permite criar expectativas em relação ao futuro, além de mais oportunidades. Assim, sonhos e planos como viajar, entrar em uma faculdade, conhecer outros lugares e pessoas e aprender novas habilidades quase sempre antecedem o desejo da maternidade.

Quando essas meninas entram em idade fértil, conversamos com elas sobre sexo e as levamos ao ginecologista, que passa a acompanhá-las com frequência e a orientá-las na escolha do melhor método anticoncepcional, a que certamente terão acesso.

Se os anticoncepcionais por acaso falharem, pagamos-lhes o aborto em clínicas onde podem contar com médicos que lhes garantam segurança. Para as mulheres de classe social mais alta, a criminalização do aborto pode ser resolvida com dinheiro.

As meninas mais ricas não se sentem socialmente pressionadas a engravidar; suas amigas não têm filhos e a elas são oferecidos vários papéis sociais que não o de mãe.

Com um ou mais filhos nos braços, as meninas de classes sociais mais baixas que mal saíram da infância não conseguem dar seguimento aos estudos, tampouco melhorar as condições de vida da família. Acabam destinadas a serviços mal remunerados, de onde tiram o sustento dos filhos, muitas vezes sem nenhum apoio.

Para as mulheres de classes mais abastadas, a maternidade é, na maioria das ocasiões, uma escolha e não um destino do qual não se pode fugir. Por que aceitamos condenar as mais pobres a uma realidade que evitamos para nossas filhas?


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Homens e a mania dos nudes sem consentimento

Imagine que você tenha acabado de acordar e de tomar café da manhã e esteja aproveitando os únicos minutos de folga que terá no dia para dar uma olhada nas mensagens do Facebook. De repente, percebe que recebeu uma mensagem de um desconhecido. Mais curiosa do que receosa, clica nela. Então, eis que surge em sua tela do computador um pênis ereto com a legenda “Oi, gata, vamos conversar?”.

Agora suponha que você esteja solteira há algum tempo e tenha cedido aos convites de amigos para entrar no Tinder, aplicativo que facilita encontros entre as pessoas. Você não curte muito a ideia, até ‘conhecer’ um rapaz que lhe parece interessante. Vocês trocam mensagens cujo conteúdo parece saído de uma festa de adolescentes: um gracejo sem jeito aqui, uma pergunta sobre a profissão acolá. Despedem-se sem grande entusiasmo. Dois dias depois, ei-la: a foto do pinto. Sem aviso prévio, sem pedido, sem intimidade que possa ter tornado possível a ousadia.

Essas duas histórias aconteceram com amigas minhas, mas são inúmeros os casos de mulheres que reclamam de homens, a maioria estranhos ou apenas conhecidos, que mandam fotos de pênis sem a menor cerimônia. É tão frequente que já virou piada entre as mulheres.

Sempre me surpreendi com a admiração e o orgulho que os homens sentem pelo seu órgão sexual. É uma verdadeira adoração, quase um culto, a ponto de não se constrangerem ao mandar fotos do dito-cujo a desconhecidas que nunca sequer lhe dirigiram a palavra. Tem que ter muita autoconfiança, né?

Desconfio, inclusive, que Freud tenha criado sua teoria sobre a inveja que as mulheres teriam do pênis ao receber uma bronca de uma senhora que não gostou de ver o órgão do médico aparecer sem ser convidado, fazendo o famoso psicanalista pensar: "Ah, não curtiu ver um pinto surgir aleatoriamente na sua frente? Isso porque as mulheres são recalcadas, têm inveja do nosso membro forte e viril!"

Brincadeiras à parte, assim como conheço inúmeras mulheres que recebem essas fotos, não sei de uma sequer que ache isso legal. Porque, sim, algumas de nós (surpresa: não todas!) gostam de pinto, mas do cara de quem elas estão a fim ou pelo menos têm algum interesse sexual. Mandar fotos íntimas tem a ver com aquela palavrinha mágica que muitos homens fazem questão de ignorar: consentimento.

Não consigo deixar de pensar no intuito da foto. Por acaso esses homens acham que alguma mulher vai olhar para ela e dizer: “Ah, que pinto lindo, vou convidar o dono para sair”? Se a estratégia dá certo, desconheço. De todo jeito, posso afirmar que nunca a vi funcionar.

Acredito que certos homens façam isso para afirmar poder. Usam o falo para intimidar, para mostrar que dominam, não para atrair. Além de exibir um enorme desconhecimento da sexualidade humana, que envolve muito mais do que órgãos sexuais, eles parecem dizer: “Vejam como sou viril, macho e poderoso, tenho pinto!”.

Se as mulheres fossem vingativas, exporiam esses homens na internet. Talvez fosse o único modo de constranger os rapazes e impedi-los de continuar a nos incomodar. Por outro lado, era capaz de eles gostarem e começarem a mandar mais fotos. Não sei.

Então, peço encarecidamente: guardem o pau para momentos de intimidade ou pelo menos deixe para exibi-lo quando lhe solicitarem. Por mais orgulho que você tenha dele, ninguém quer começar o dia com sua afirmação de macheza e poder em forma de falo. Quando quisermos, a gente avisa.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Homens e o debate sobre igualdade de gênero

Acho importante atrair os homens para o debate sobre igualdade de gênero e direitos da mulher, ainda mais se pensarmos que são eles que ainda detêm os principais cargos de poder.

E, sim, vejo muitos interessados em debater, em escutar nossas demandas, principalmente os mais jovens.

Uma crítica comum que os homens fazem ao movimento feminista é que não os deixamos opinar e os colocamos logo de cara sob suspeita, como inimigos.

Eu convido os homens que reclamam a inverter o jogo e, em vez de acusar, se perguntar: por que será que isso acontece? Será que as feministas são todas radicais que odeiam os homens e querem combatê-los? Será que o feminismo é sobre homens?

O que ocorre, caros, é que a maioria dos homens age com desonestidade ao falar de feminismo. Não escuta, não se informa, pega trechos de discursos fora de contexto ou unifica o movimento em uma caixa que lhes convém.

E isso irrita porque nos desqualifica, nos resume a um bando de malucas radicais que só querem xingar homem.

Antes de falar sobre qualquer coisa, é preciso saber sobre o que se fala, ter humildade para escutar, estudar, pesquisar.

Ou os homens baixam um pouco a bola (sei que é difícil para quem sempre foi reconhecido como certo) ou não vai haver diálogo. Infelizmente.


*Texto originalmente publicado no site "Casa da Mãe Joanna"

Relativização da violência contra a mulher

“Eu queria primeiro deixá-la ciente do quanto ela prejudicou minha carreira. [...] Presenciei tudo e sei o quanto estávamos em clima de descontração. Errei por ter feito as brincadeiras que fiz com uma pessoa que não conheço”, disse MC Biel à RedeTV! sobre o episódio de assédio a uma jornalista protagonizado por ele, em maio deste ano.

Além de tentar inverter o jogo fazendo-se de vítima, Biel relativiza a violência do assédio, dizendo que fez uma “brincadeira”. Se assim fosse, a moça que o denunciou, além de ser mal-intencionada por tentar acabar com a carreira do rapaz, ainda não teria senso de humor.

Há quarenta anos, o playboy Doca Street comovia o país ao chorar diante das câmeras de TV depois de assassinar a companheira Ângela Diniz com quatro tiros (três no rosto). A família e os amigos de Ângela tiveram de assistir a um julgamento que transformava a vítima em uma mulher manipuladora, infiel, violenta, sexualmente incontrolável e provocante que cavou a própria sepultura.

Doca passou pouco mais de 5 anos na cadeia, retomou a vida, casou-se, teve filhos, escreveu um livro sobre o caso e ainda disse em entrevista à revista IstoÉ: “A Ângela até nem sofreu, porque morreu. Quem fica, sofre”. É de dar pena, não?

Quarenta anos é bastante tempo, e muita coisa mudou de lá para cá. No entanto, as mulheres ainda continuam sendo culpabilizadas pela violência que sofrem.

A facilidade com que assassinos, estupradores, assediadores e espancadores se dizem arrependidos e tentam comover a sociedade ao justificar suas atitudes é chocante. E eles fazem isso por um único motivo: funciona.

Não conheço nenhum outro crime em que se dizer arrependido e colocar a responsabilidade na vítima sejam uma tática de defesa tão bem sucedida. Ninguém diz a uma vítima de assalto que ela provocou o crime, muito menos um ladrão tem o descaramento de afirmar que a denúncia de suas vítimas atrapalhou sua vida.

Por que, então, aceitamos que homens justifiquem seus crimes quando as vítimas são mulheres? Por que buscamos respostas na atitude e no comportamento de quem sofreu a agressão para explicar a violência do agressor? Até quando vamos dar atenção e espaço na mídia e na sociedade em geral para homens destilarem seu “arrependimento” em busca de redenção?

Dizer que nada justifica a violência é chover no molhado. Contudo, isso não se aplica quando a vítima é mulher.

Como veem, 40 anos não é tanto tempo assim.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"