quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Publicações femininas

Esta semana, surgiu nas redes sociais uma série de montagens de capas de revistas satirizando as publicações femininas de maior circulação nacional. O intuito era questionar o conteúdo dessas revistas com humor, propondo uma brincadeira: como seriam as manchetes de capa se essas revistas fossem destinadas ao público masculino?


“Aprenda a fazer o prato favorito da sua mulher”, “Seu filho é hiperativo: Dicas de pais que passaram por esse problema”, “Como emagrecer enquanto limpa a casa” e “Será que devo transar no primeiro encontro?” foram algumas das manchetes inventadas nas supostas revistas masculinas.


A proposta é interessante, embora alguns homens não tenham gostado: usar o humor para fazer com que a sociedade note o conteúdo sexista e limitado que permeia a imensa maioria das publicações destinadas ao público feminino. A impressão que temos é que as revistas não apenas desconhecem que há mais de um tipo de mulher na sociedade, mas também se empenham com afinco em reforçar os estereótipos e o preconceito por meio de informação pouco relevante.

Uma revista destinada às mulheres não deveria se importar com questões de gênero, violência doméstica, tabus sexuais, racismo, machismo e outros problemas que nos afetam diretamente? Então por que as publicações femininas cismam em escrever matérias que só falam de como cuidar dos filhos, agradar os homens, ficar mais bonita e dar conta de uma jornada tripla sem descer do salto?


A primeira resposta que encontro é bastante óbvia: porque esse conteúdo vende. E isso significa que atrai anunciantes. Que produto vai querer anunciar em uma revista que fala sobre aborto? Ou que trata de estupro? Bem melhor associar sua marca a matérias que ensinam a fazer maquiagem ou a se vestir bem.


O problema é fingir que é isso que as mulheres querem ler. Não é. Pelo menos, não todas. Mas se só fizerem revistas assim, é isso que as mulheres vão ler. E de tanto ler, muitas acabarão acreditando na mentira vendida nas revistas. Quantas meninas e mulheres jovens não acham que é isso que todas queremos e devemos consumir, que a sociedade nos reservou apenas o lugar da cozinha e da cama e é lá que precisamos ficar, de preferência bem bonitinhas e felizes?


Talvez muita gente não saiba, mas tem um monte de mulher ocupando outros espaços, com discursos diversos, que tem muito a mostrar e não se interessa apenas em agradar os homens. E a publicação que der voz a essas mulheres certamente contará com um público considerável, embora mais restrito. Basta ter coragem de arriscar.


Uma coisa é certa: essas publicações sabem o estrago que fazem na vida das mulheres ao nos venderem a imagem da mulher perfeita, que dá conta dos filhos, marido, trabalho, casa e ainda assim goza mil vezes e encontra tempo para ficar linda e magra. Conhecem o poder da propaganda, sabem que colaboram com o crescimento dos casos de distúrbios alimentares, com o racismo, com a cultura do estupro, com a baixa autoestima daquelas que não se enquadram no modelo vendido. Elas só não se importam.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Coletor menstrual: por que não falamos dele?

À primeira vista, ele parece um cálice feito de silicone. Embora possa causar estranheza no início, a maioria das mulheres que o experimenta diz que não vive mais sem ele. Mesmo assim, pouca gente o conhece ou já ouviu falar dele.


O coletor menstrual, também chamado de “copinho”, é um dispositivo usado para coletar o sangue menstrual. Ajustável ao corpo, oferece baixo risco de infecções (não há nenhum caso de Síndrome do Choque Tóxico registrado com seu uso, por exemplo), é hipoalergênico, econômico – custa de R$ 85,00 a R$ 150, 00 – e reutilizável, podendo durar de cinco a dez anos.

Ao contrário do absorvente interno, que precisa ser introduzido no fundo do canal vaginal, o coletor deve ser colocado na entrada da vagina, o que pode causar certo desconforto durante o período de adaptação, que costuma variar de dois a cinco ciclos, em média.

Segundo a doutora Renata Lopes Ribeiro, médica-assistente da Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da FMUSP e membro da equipe de Medicina Fetal do Fleury e da Maternidade São Luiz (SP), é preciso esvaziá-lo a cada 6 a 12 horas, dependendo da intensidade do fluxo menstrual. Para higienizá-lo, basta lavá-lo com água fria e sabão e fervê-lo após o período menstrual. Como o sangue não entra em contato com o ar, o coletor também evita o mau odor, que pode ocorrer com o uso de absorventes externos.

Em geral, as marcas disponíveis no mercado oferecem dois tamanhos de coletores, um para mulheres que não tiveram filhos e outro para as que já tiveram. O dispositivo não está à venda em farmácias, somente pela internet. Sua única restrição de uso vale para quem ainda não teve relações sexuais, pois o hímen pode se romper na hora de introduzir ou retirar o copinho, e para as puérperas (mulheres que tiveram filhos há menos de 40 dias).

“Não existe um tipo de absorvente que seja universalmente melhor para todas as mulheres. É preciso considerar as características do absorvente, assim como o perfil do ciclo menstrual, as preferências e estilo de vida de cada mulher que irá utilizá-lo. É bom saber que existem opções que contemplem as necessidades de cada uma de nós”, salienta a dra. Renata.

Com todas essas vantagens, é de se estranhar que pouco se fale a respeito dos coletores. Por que um dispositivo relativamente barato, sustentável (o absorvente externo demora cerca de 100 anos para se degradar na natureza e o interno, mais ou menos um ano), que oferece baixo risco de infecções e mais liberdade à mulher é tão pouco divulgado?

Uma coisa é certa: para usar o coletor, a mulher precisa entrar em contato com o próprio corpo, tocá-lo, conhecê-lo, aceitá-lo. Em uma sociedade em que falar sobre o funcionamento e as necessidades do corpo feminino ainda é tabu, em que mesmo hoje em dia algumas meninas escondem até da mãe, mulher como elas, que menstruaram, é fácil entender por que pouco se fala sobre o dispositivo. Espera-se de nós, mulheres, que lidemos com a menstruação em segredo.

Devemos apoiar toda iniciativa que vise a dar mais liberdade e opção de escolha para a mulher. Cada uma tem um corpo, uma história, e quanto mais alternativas tivermos, melhor. Portanto, é hora de olharmos com mais carinho para elas. E para nós.


*Texto originalmente publicado no drauziovarella.com.br

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Quando uma vida vale menos


O movimento contínuo de carros e pessoas anuncia a proximidade do fim de semana. A noite quente, atípica para esta época do ano, convida para uma cerveja nas centenas de mesas dos bares de dois bairros paulistanos famosos pela boemia, Jardins e Vila Madalena. O som da risada e da voz de jovens, a maioria de classe média e classe média alta, se faz ouvir há dezenas de metros.


No meio da confusão festiva, ninguém estranha quando um Peugeot prateado para em frente de um desses bares por volta das oito da noite. Dois homens encapuzados descem armados e atiram nas pessoas que até então não haviam notado sua presença. Alguns gritam e tentam se esconder embaixo das mesas, outros não têm tempo sequer de reagir e caem mortos. O barulho dos tiros e o sangue que escorre nas calçadas transformam aquele ambiente antes alegre em um cenário de guerra.


A cena se repete durante cerca de duas horas em oito lugares diferentes, totalizando dezoito mortos e vários feridos. Uma das vítimas, Pedro, de 33 anos, era casado e tinha três filhas pequenas, agora órfãs. O corpo de Paulo, 26 anos e morto com seis tiros, aguarda durante doze horas na calçada pelos agentes do IML, exposto e abandonado como um cachorro, nas palavras do irmão.


As testemunhas nunca se esquecerão do que viveram. No dia seguinte, os meios de comunicação noticiam a tragédia initerruptamente. O governo do estado promete prender os assassinos, provavelmente policiais ligados a grupos de extermínio. A população, chocada, sai às ruas clamando por justiça, em apoio a dor dos familiares das vítimas. O país demora um tempo para retomar a rotina.


A cena acima é parcialmente fictícia. Com exceção do local, da classe social das vítimas e do desfecho, a história é verídica. A chacina ocorreu na quinta-feira passada (13/8), nos municípios de Osasco e Barueri, ambos na região metropolitana de São Paulo. Os autores dos crimes, ao que tudo indica, são policiais que pretendiam vingar a morte de dois colegas vítimas de latrocínio. Pedro e Paulo são, respectivamente, Jonas dos Santos Soares e Eduardo Bernardino César.


É difícil saber o que teria acontecido exatamente se a chacina tivesse ocorrido nos bairros de classe A e B. Arrisco-me a dizer, no entanto, que seria algo bem diferente do silêncio incômodo dos últimos dias. Mas jovens brancos de classe média alta não são alvos de chacinas praticadas por grupos de extermínio.


Os motivos que levam as pessoas a se solidarizar e se chocar com a morte violenta de uns e não de outros são muitos. No entanto, não consigo deixar de lamentar com profunda tristeza e indignação o fato de termos nos tornado uma sociedade tão hipócrita e cruel a ponto de atribuirmos valor ao que não deveria ter preço: a vida humana.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Princesinha do papai

"Meu pai não me deixava chegar tarde nem trazer namorado para dormir em casa. Meu irmão podia fazer todas essas coisas, eu não. Mas fora isso, ele é o máximo.” Assim definiu seu progenitor uma grande amiga minha. Imagino que seu pai seja mesmo um cara legal, embora tenha deixado uma marca indelével na vida dela: sua criação fez com que acreditasse, mesmo sem ter consciência disso e por muitos anos, que é aceitável que homens e mulheres sejam tratados com direitos e moral diferentes. Pior: que eles têm valores distintos.

Nossa visão de mundo é influenciada por vários fatores, experiências e pessoas. Aprendemos com o que lemos, ouvimos e vivemos, com aqueles com quem cruzamos no caminho, com as reflexões que fazemos. O modo como enxergamos o mundo está em constante formação e, por isso mesmo, pode mudar.

Contudo, há algo que, depois de constituído, dá um trabalhão danado alterar: a forma como nos vemos, nossa autoimagem. As experiências das várias etapas da vida, incluindo infância e adolescência, são essenciais para o contorno da imagem que teremos de nós, que se reflete na maneira como nos colocamos no mundo e na nossa autoestima. Na fase de formação, o pai tem papel extremamente importante.

Um pai machista faz um belo estrago na vida de uma menina. Ele é a primeira referência masculina para a filha, e suas opiniões e o modo como enxerga o mundo e trata as pessoas são primordiais na constituição da sua visão de mundo e de si mesma.

Se ele a faz acreditar que ela não tem o direito de fazer escolhas e que elas não são boas o bastante para serem respeitadas, ela provavelmente vai acabar acreditando. Algumas conseguem, depois de muito empenho e dedicação, mudar a autoimagem negativa que fazem de si mesmas, mas muitas mulheres creem que de fato seus desejos e escolhas valem menos do que os dos outros, em especial dos homens. E que elas merecem pouco da vida, muito pouco.

O pai consciente de sua tarefa é aquele que entende que sua obrigação é fornecer ferramentas (aí também estão incluídos limites e regras, obviamente) para que a filha cresça se sabendo amada e amparada, mas segura e apta para fazer valer suas escolhas. Esse cara, antes de tudo, respeita e acredita na mulher que a filha é e sabe a importância que isso tem na formação da sua autoestima. Ele a ajuda a ser e a acreditar que é capaz.

Se seu pai trata você e seu irmão ou outros homens com regras, moral e direitos diferentes, não permite que você faça certas coisas não porque discorda delas, mas porque você é mulher, desculpe, mas seu pai não é o máximo. Ele é machista. Você vai querer para pai da sua filha um cara assim?


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

terça-feira, 11 de agosto de 2015

A quem curte pornografia de revanche

Prezado rapaz que expõe vídeos eróticos de parceiras sem sua permissão:

Hoje eu quero lhe contar uma coisa que talvez você não saiba: muita gente faz sexo. Muita mesmo. Não todo mundo, mas muita gente. E várias pessoas fazem sexo com mulheres, porque se sentem atraídos por elas, acham gostoso. Assim como você.

A diferença entre essas pessoas e você é que elas curtem e guardam para si e a parceira o momento que viveram. Você não. Você achou, seja lá por que motivo, que aquela moça com quem compartilhou momentos de prazer, intimidade, sorrisos e confissões deve se envergonhar do que fez. E você vai ser o responsável por isso. Porque você é foda. Você pode.

Sim, você vai trair a confiança que ela depositou em você ao se deixar filmar. Mas tudo bem, porque o importante é você fazê-la sentir vergonha de ter tido prazer ao seu lado. O que vale é você afirmar seu poder. Afinal, onde já se viu uma mulher ousar sentir prazer e ainda por cima demonstrar?

Sua “sorte” é que você vai encontrar outros idiotas como você, que vão lhe dar razão, vão compartilhar seu vídeo, na esperança de difamar uma moça que, muitas vezes, nem conhecem. Eles vão rir, vão tecer comentários maldosos, vão se divertir com o fato de uma mulher ter feito exatamente o que eles fazem, vão adorar afirmar o poder sobre as mulheres.

Essa moça que há minutos você levou para cama não merece a menor consideração. Você não se importa com o que ela sente, com o que dizem dela, com o impacto que sua atitude eventualmente causará em sua vida. Porque, para você, ela é lixo. Se você a julgasse gente, certamente não agiria assim, não é?

Quer saber? Eu também me envergonharia, se fosse ela. Não por ter feito sexo, mas por ter feito sexo com você. Porque você é um merda.

Só posso torcer para que ela levante a cabeça e siga adiante, e seja mais feliz em suas escolhas. Existe muita gente bacana no mundo. Ninguém tem que se sentir envergonhado por fazer sexo, nem por ter se deixado filmar ou seja lá o que tenha decidido fazer em comum acordo com o parceiro na cama. O babaca é você, ela é vítima.

Não vou dizer para as meninas não se deixarem filmar, para duvidarem do parceiro porque existem idiotas como você. Não se faz sexo sem confiança, sem entrega, e ensinar as meninas a se policiar, a desconfiar, a controlar seus desejos é privá-las do que há mais bonito no sexo: a cumplicidade.

Mas, calma, não quero apenas criticá-lo, também tenho uma sugestão a lhe fazer. Por que você não deixa o sexo compartilhado com quem gosta de gente, com que respeita os seres humanos e vai se filmar sozinho pelado em frente ao espelho? Bem macho, bem garanhão. Afinal, você é foda.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Machismo e nossas filhas


Toda mulher nasce exposta ao machismo, embora em graus diferentes. Quando pequenas, mandam-nos tomar cuidado para não mostrarmos a calcinha por baixo do vestido. Não nos deixam sentar de perna aberta, ensinam-nos a nos comportar, a não usar roupa muito curta, a não ceder aos meninos e nos proteger dos homens, como se eles fossem todos uns tarados prontos para nos agarrar.


Então a gente cresce. E, bem ou mal, aprende a se defender das cantadas, dos preconceitos e julgamentos morais, e tenta reconstruir a autoestima e a autoconfiança que foram minadas durante anos e anos, em um processo que tem sido bastante útil à sociedade patriarcal.


De repente a gente tem filhas. E vê que embora tenhamos aprendido a nos defender e nos impor, nada nos preparou para enfrentar o machismo que vitima uma filha. Nada.


Semana passada, minha caçula brincava na piscina usando apenas a parte de baixo do biquíni. A salva-vidas, uma mulher jovem, pediu que colocássemos uma camiseta nela para protegê-la dos meninos e homens que dividiam a piscina conosco. Minha filha tem apenas 5 anos.


Estávamos em outro país, mas a situação bem poderia ter acontecido no Brasil, onde cenas parecidas de sexualização precoce de meninas ocorrem diariamente.


Não pretendo julgar a mulher. Não a conheço, não sei por quais situações passou para pedir algo tão sem sentido. Também acredito que sua intenção fosse mesmo proteger minha filha, por mais absurdo que isso possa parecer. Para mim, ela é tão vítima quanto minha menina.


A força, a coragem, a rebeldia desaparecem quando a vítima é aquela criaturinha tão amada, criada para ter força, mas ainda despreparada para enfrentar o preconceito. A gente se sente desamparada, frágil. E com raiva, muita raiva.


Na hora fiquei paralisada. Não sabia o que fazer. Senti uma tristeza enorme por mim, por minha filha, por aquela mulher. Acreditem, não foi nada fácil entender e assumir que apesar de hoje saber me defender relativamente bem do machismo, ainda não estou pronta para proteger minhas filhas.


No fim, o pai da minha filha se negou a pôr a parte de cima do biquíni nela e disse que o pedido não tinha cabimento, que se algum homem se sentisse atraído pelo peito desnudo de uma menina de 5 anos, quem teria um problema seria ele, não ela.


Negar-nos a ceder à pressão para vestir o biquíni foi mais que um ato de resistência: foi uma demonstração de que mulheres e homens devem combater o machismo, não podem engolir quietos que tratem as meninas desse modo.


Sempre que se aponta um preconceito, aparece alguém para chamar a denuncia de “vitimização” ou dizer que o ocorrido não foi tão grave assim, em uma tentativa frustrada de deslegitimá-lo. Meu recado para essas pessoas: não ensino minhas filhas e sobrinhas a ser vítimas, mas a olhar o que está errado, a questionar, a lutar contra os preconceitos e procurar jamais reproduzi-lo contra os outros. Ensino-as, também, a escutar as pessoas e a ter empatia por seu sofrimento, mesmo que não o compreendam bem.

Para as gerações que já estão aqui e para as novas que virão, só posso torcer e lutar para que o mundo melhore. Pois por mais que certos hábitos, atitudes e costumes sejam diferentes dos seus e dos meus, todos merecem respeito, desde a infância até a velhice.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"