terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Estuprador nem sempre é doente

Na semana passada, chamou a atenção da mídia o caso do pai que detinha a guarda e estuprava sistematicamente as cinco filhas de 5 a 14 anos, no Amapá. Ao ser preso, ele disse: “Era rapidinho, não fazia nada não, era rapidinho”.

É difícil encontrar quem não se choque com essa história. Uma passada rápida pelos comentários dos mais importantes sites de notícia revela pelo menos duas posturas que chamam a atenção.

A maioria das pessoas quer que o pai estuprador sofra muito na cadeia, antes de morrer lenta e cruelmente. Chamam-no de “monstro”, “pedófilo” e “doente mental”. Outro grupo pergunta, raivoso, onde estava a mãe das crianças, que deixou a guarda de filhas mulheres com um homem, sem lembrar que esse “homem” é o pai das meninas, que devia protegê-las e tinha tanta responsabilidade no cuidado com as filhas quanto a mãe.

Essas duas atitudes falam muito sobre a cultura do estupro no Brasil. É comum chamarmos os estupradores de “monstros” e “doentes”. Se isso fosse verdade, então teríamos mais de 47 mil homens com problemas mentais apenas no ano de 2014, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Isso sem contar os casos que não são denunciados.

Sabemos que os estupradores não são, em sua maioria, doentes mentais ou pedófilos, muito menos monstros. Se fossem, os estupros seriam raros, e o pai em questão não trataria as acusações com tanta naturalidade, como fazem muitos estupradores.

Obviamente, isso não significa dizer que qualquer homem se tornará estuprador, mas que parte deles considera o estupro algo aceitável. Muitos homens sentem prazer em dominar uma mulher, em submetê-la ao pavor, em vê-la imobilizada, sem ação.

A outra postura vista nos comentários, a que tenta responsabilizar a mãe das meninas, é nada mais, nada menos que a boa e velha tática de colocar a culpa na mulher. Como é muito pesado culpar crianças (acreditam, alguns o fizeram em comentários de embrulhar o estômago), acusam a mãe, que não estava presente (onde já se viu?).

Está mais do que na hora de reconhecermos que vivemos em uma cultura em que o estupro é condenável na teoria, mas incentivado e tolerado no dia a dia. Transformar os estupradores em monstros ou colocar a culpa na mulher não vai mudar essa realidade.

A imensa maioria dos estupradores não é composta por doentes mentais, muitos são inclusive conhecidos das vítimas. Devem ser presos, julgados e punidos de acordo com a lei. Eles são os culpados, eles são os criminosos. Não são monstros, não são doentes mentais: são homens comuns.


*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Meu amigo secreto


A campanha ‪#‎meuamigosecreto‬ surgiu, até onde sei, espontaneamente na internet. Não foi organizada nem tem autoria conhecida. Na linha da‪#‎primeiroassédio‬, esta, sim, criada com objetivo claro e definido pelo Think Olga, incentiva as mulheres a falar sobre atitudes machistas de amigos e conhecidos. Diferentemente da primeira, gerou muitas críticas. Listo aqui algumas considerações necessárias:


1) Por que a campanha é importante para as mulheres?
A internet trouxe algo valioso para as minorias, inimaginável tempos atrás: a possiblidade de se comunicar, de somar esforços e unir pessoas que passam pelos mesmos problemas mas que, de outro modo, nunca se encontrariam. Isso fortalece os indivíduos, os grupos e, consequentemente, a luta por direitos.
A campanha #meuamigosecreto é bacana porque as mulheres podem denunciar situações machistas pelas quais passam no dia a dia e conversar sobre elas, trocar informações, encontrar apoio entre si. Desse modo, elas se fortalecem. Também tem como mérito o fato de revelar como o machismo é intrínseco na nossa sociedade, como permeia o cotidiano e “contamina” as pessoas.


2) Não seria melhor se as mulheres dissessem para os próprios amigos que não gostaram de sua atitude em vez de insinuar e dar indiretas?
Sim, seria muito melhor se pudéssemos olhar na cara de cada amigo ou colega que perpetua atitudes machistas e ter uma boa conversa com ele. Acontece que isso nem sempre é possível. Muitas mulheres têm medo, e não sem razão. Outas sentem vergonha ou não sabem bem como agir. Os homens também quase nunca estão receptivos a ouvir (acreditem) e muitos reagem com agressividade. E o foco da campanha, pelo que entendo, é denunciar as atitudes exatamente sem personalizar, para mostrar como elas são comuns, na esperança de que quem as pratique possa refletir, reconhecê-las e evitá-las.


3) Muita mulher está usando a campanha para dar indiretas em amigos e ex-namorados e isso não ajuda em nada a luta por direitos.
Como toda campanha, esta também está sujeita a deturpações e não é perfeita, o que não a desvalida de forma nenhuma. Seu intuito é expor feridas, mostrar para outras mulheres que elas não estão sozinhas, revelar para a sociedade como muitas atitudes machistas são propagadas sem que pensemos nelas e como isso machuca, agride e ofende as mulheres. A ideia é revelar para mudar.


4) Por que esta campanha ofendeu mais os homens do que as outras?
Bom, tenho alguns palpites. Na ‪#‎primeiroassedio‬, que foi importantíssima, as mulheres acusaram o outro: o desconhecido na rua, o padrasto machista, o babaca com o qual muitos homens, principalmente mais jovens e que já cresceram sob a influência de muitas conquistas feministas, não se identificam. Esta campanha mostra que qualquer homem pode ser machista, justamente porque ele é estrutural e se revela até nas sutilezas.
Também acho que muitos não compreenderam bem o intuito e julgaram que o objetivo das mulheres é se vingar (se fosse, também seria compreensível), quando na verdade ela vale muito mais para nós, mulheres, do que para os homens. É muito importante para o feminismo que as mulheres se apoiem, identifiquem-se umas com as outras, encontrem-se e somem esforços.


5) Por fim...

É extremamente difícil nos reconhecer machistas (ou racistas ou homofóbicos ou seja lá o que for). É duro, principalmente se nos esforçamos para não ser. Mas é importante, também. É assim que avançaremos.
Sugiro que respeitem as campanhas e manifestações que ainda vão surgir, escutem, reflitam, pensem no motivo de elas existirem e, em última instância, incomodarem tanto.
Talvez um dia elas não sejam mais necessárias; quem sabe a sociedade mude a ponto de não precisarmos mais delas e desenvolva meios para que possamos denunciar atitudes machistas com segurança e efetividade. Por enquanto, as campanhas, gostemos ou não delas, vão continuar. Como dizemos por aí, não tem mais volta.

*Texto originalmente publicado na página "Quebrando o Tabu"