quarta-feira, 27 de julho de 2016

Amores e montanhas

Que não existe só uma maneira de se relacionar afetivamente, acho que a maioria das pessoas, principalmente as mais jovens, concorda. Os seres humanos são diversos, assim como seus desejos e sentimentos. Pensar que há apenas um modelo que dê conta de todo mundo é, no mínimo, muita inocência.

Foi-se o tempo em que somente a relação heternormativa e monogâmica era a única possibilidade. Hoje as opções, ainda bem, são mais amplas. Existem muitos modelos de relacionamento possíveis, e cada um pode escolher como e com quem quer se relacionar amorosamente. No entanto, essa liberdade de escolha não é, de fato, uma possibilidade real para todas as mulheres.

Educadas e ensinadas a acreditar no amor romântico e a esperar mais dos homens do que de si mesmas, as que percebem que estão embarcando em uma furada ao buscar um relacionamento amoroso que satisfaça todas suas necessidades vivem um dilema: como ir contra tudo aquilo que a sociedade espera delas sem as ferramentas necessárias?

É como se de repente dissessem a um grupo de crianças: “Olha, vocês não precisam brincar só de casinha, podem escalar montanhas também, só que não vamos lhes dar o equipamento e o treino necessários”. A maioria vai preferir a velha casinha, que embora não seja lá essas coisas, pelo menos é segura e conhecida; as que se aventurarem na montanha provavelmente vão se machucar feio.

Para se relacionar com o outro em pé de igualdade, é preciso admitir seus limites, seus desejos, suas expectativas. É necessário, acima de tudo, aceitar-se e respeitar-se, conhecer, gostar e confiar em si, e isso não ensinam às mulheres. Ao contrário, ensinam-nos a buscar a felicidade no outro: no parceiro ideal, no marido perfeito, nos filhos que virão, na família a quem deveremos dedicar a vida.

As diversas possibilidades hoje disponíveis, sem os meios necessários para vivê-las em sua plenitude, tornam-se, portanto, uma armadilha perigosa.

O resultado é que muitas mulheres continuam à mercê dos parceiros, mesmo que vivenciando modelos de relacionamento diferentes. São eles que dão o tom. Porque o problema não está nos modelos, apenas, mas no fato de que às mulheres não são dadas as oportunidades de desenvolver e expressar seus desejos.

A verdadeira liberdade não consiste apenas em oferecer possibilidades, mas em fornecer ferramentas para que todos e todas tenham condições de dela desfrutar. Qualquer coisa fora disso é migalha, um arremedo de liberdade. E uma cilada para os incautos.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"

quinta-feira, 21 de julho de 2016

A desculpa do crime passional

Há cinco dias, Cristiane de Souza Andrade foi assassinada a facadas na frente da filha de 7 anos, quando caminhava pela rua próxima à sua casa, no Rio de Janeiro. A cena da menina pedindo ajuda, coberta pelo sangue da mãe, ganhou os noticiários do Brasil e do mundo.

O que parecia uma tentativa de assalto malsucedida ganhou contornos de “crime passional”. Rojelson Santos Baptista, assassino confesso, contou que mantivera um relacionamento amoroso com a vítima, que se recusara a continuar a relação, motivando o crime. A família de Cristiane, no entanto, nega veementemente a versão do criminoso, afirmando que ela vivia com outro homem havia alguns anos. Apesar disso, a Policia Civil, mesmo sem divulgar nenhuma prova concreta, assumiu a versão dada por Rojelson como verdadeira.

Infelizmente, quem poderia esclarecer os fatos, a própria Cristiane, não tem como se defender da acusação de trair o namorado e ainda abandonar o amante inconformado, mas não me surpreenderia se o assassino estivesse inventando a história. Na verdade, ele tem todos os motivos para fazê-lo.

Acusado anteriormente de tentar matar uma ex-companheira também a facadas, Rojelson foi inocentado da acusação. Pôde desfrutar da liberdade até matar Cristiane diante da filha pequena. Ele não é exceção. Agredir uma mulher não costuma levar quase ninguém à cadeia: apenas 7% dos agressores domésticos são presos ou aguardam julgamento no Brasil (Mapa da Violência 2015).

Os crimes ditos passionais, que hoje são considerados feminicídios por lei e nada têm a ver com paixão e sim com misoginia e machismo, sempre foram tolerados pela sociedade. Tanto é que a cada uma hora e meia uma mulher é assassinada no Brasil apenas por ser mulher (Ipea, 2012). São 472 mulheres mortas por mês, a maioria por parentes, parceiros ou ex-parceiros (mais de 50%, segundo o Mapa da Viol.) que já agrediram ou ameaçaram a vítima anteriormente.

Rojelson tem todas as razões do mundo para difamar e tentar responsabilizar Cristiane de alguma forma, embora nada justifique seu assassinato. Sabe que terá mais chances de sensibilizar a Justiça posando de mal-amado e ferido emocionalmente por uma mulher que ousou lhe dizer não, pois já confirmou que a tática costuma dar certo. Para a polícia e demais autoridades, também é mais fácil acreditar na história do assassino, afinal o Rio de Janeiro sediará as Olimpíadas em breve e ninguém precisa de mais uma história de latrocínio para escancarar a falta de segurança pública da cidade, não é mesmo?

O fato é que poucos se importam com as milhares de Cristianes que morrem todos os anos no Brasil, muito menos com o que dizem delas. Culpar as vítimas, principalmente quando são mulheres, é o que fazemos de melhor.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"