segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Seu Orlando


Seu Orlando passou a infância e parte da adolescência em Tabira, sertão de Pernambuco. Aos 19 anos, veio para São Paulo ganhar a vida, repetindo a sina de milhares de conterrâneos. Trabalhou por cinquenta anos como feirante, ocupação que lhe rendeu sustento e uma casa modesta na zona leste da cidade.

Afeito ao batente, sua única distração era observar o movimento das ruas do bairro acompanhado de um copo de cachaça e de quem quisesse se sentar à sua mesa no bar do seu Sebastião, baiano de Queimadas e seu vizinho havia anos, nos domingos à tarde.

Homem de poucas palavras e rosto talhado pelo tempo e pelo sol, era econômico nos sorrisos mas generoso nos conselhos, que gostava de dar aos mais jovens.

“A vida é mesmo um troço complicado”, costumava encerrar suas conversas. E se calava, a mão no joelho esquerdo cruzado sobre a perna direita.

Nunca se casara, e afora um sobrinho que viera morar com ele por um tempo para tentar se estabelecer na capital paulista, não tinha familiares na cidade.

Apesar do pouco estudo, gostava de ler, principalmente os livros que lhe remetiam à terra natal. “Tem muita coisa que não entendo, mas o homem precisa de companhia de vez em quando, e quem lê não fica sozinho.”

Tinha uma mania, apenas: andava sempre bem vestido. A calça passada a ferro, a camisa impecavelmente limpa e o chapéu de palha branco conferiam-lhe um ar respeitoso. “Um homem é julgado antes pela aparência, depois vem o caráter.”

Quando lhe pediam opinião sobre os assuntos do coração, respondia: “Não pode amar demais, senão perde o prumo. Amar pouco também não é bom, faz falta a alegria do amor na mocidade e a lembrança dele na velhice. É no acerto da dose que as pessoas se perdem”.

Sobre seus amores, dizia: “Amei muito, muito mesmo. Várias mulheres. Algumas ao mesmo tempo. Mas sempre respeitei, sempre gostei de verdade das minhas companheiras, até das que ficaram pouco. Mulher a gente tem que amar, senão não presta”.

A voz áspera se adoçava quando falava de Diolinda, negra de nariz arrebitado com quem vivera na juventude. “Mulher bonita, aquela. Grandona, forte, não reclamava do trabalho, nada. Mas não aceitava meu jeito, queria que eu assentasse, e eu não podia, nem sou homem de enganar. Então ela foi embora. E quando a mulher tem fibra, tem coragem, ela não olha para trás, bate a porta, decidida. Não me arrependo dos caminhos que segui, mas sofri de ter perdido a morena. Meu único arrependimento. É, a vida é mesmo um troço complicado.”

E se levanta e sai, o andar meio trôpego por causa de um desvio na coluna devido às caixas que carregou e descarregou a vida inteira na feira do Ceagesp.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

O coração das mulheres


No seu aniversário de 4 anos, Marina ganhou da avó uma boneca loira que falava e levantava os braços. O irmão gêmeo, Lucas, uma bola de futebol. Na hora do recreio da escola, Lucas joga futebol e brinca de luta, enquanto Marina prefere brincar de “mamãe e filhinha” com as amigas.

A mãe, Ana Paula, afirma: “Lucas não para um minuto. Está sempre inventando alguma coisa, não fica quieto nunca. Marina é mais mocinha, adora brincar de casinha e ver televisão”.

Desde pequenas, as meninas aprendem que devem se comportar e evitar brincadeiras consideradas próprias para os meninos. Só que a inatividade física, mais comuns às crianças do sexo feminino, traz consequências para a vida adulta. [relacionados]

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo IBGE em 2013, revela que 40,8% dos homens acima de 18 anos são insuficientemente ativos. Entre as mulheres da mesma faixa etária, esse número chega a 52,5%.

Cerca de 27% dos homens praticam o nível recomendado de atividade física nos momentos de lazer (150 minutos semanais de atividade física de intensidade leve ou moderada, como caminhada e hidroginástica, ou 75 minutos por semana de atividade física de intensidade vigorosa, como corrida e esportes coletivos), mas apenas 18,4% das mulheres são fisicamente ativas.

A justificativa para a falta da prática de exercícios geralmente é a mesma: pouco tempo disponível. As mulheres hoje em dia trabalham fora, além de cuidarem da casa e dos filhos, atividade que, na maioria das vezes, realizam praticamente sozinhas.

Nas últimas décadas, elas adotaram hábitos que antes eram quase que exclusivos dos homens. O número de mulheres fumantes e que consomem bebidas alcoólicas em excesso aumentou muito.

Assim como o resto da sociedade, elas se alimentam mal, o que significa que consomem poucas frutas e verduras e muito açúcar e gordura, especialmente a saturada.

O resultado do acúmulo de atividades, sedentarismo e maus hábitos é que as mulheres estão mais obesas, com níveis de colesterol e glicemia elevados e, consequentemente, mais doentes.

As doenças crônicas não transmissíves (DCT) como cânceres, diabetes, doenças cardioavasculares, entre outras já são responsáveis por 70% das mortes prematuras (antes dos 70 anos) no Brasil.

De cada 10 mortes por infarto, 6 são de mulheres, segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC).

Não há alternativa, nesse caso. As mulheres precisam delegar tarefas, deixar de lado os hábitos nocivos à saúde e se mexer. É necessário arrumar tempo e julgar-se merecedora do cuidado com a saúde.

O alto número de mulheres que morrem de doenças cardiovasculares é mais uma faceta de uma sociedade que permite que elas vivam sobrecarregadas e sem tempo para pensar em si.

*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Mulher não é cavala


O nariz deve ser ligeiramente arrebitado e afilado, permitindo que a distância até o lábio forme um ângulo de 106o. O abdômen não pode ter nenhuma gordura, sua musculatura deve ser hígida. Cintura fina, seios fartos e empinados, coxas grossas, cabelo liso, um tipo definido como “cavala”.

Não é de hoje que se comparam mulheres a animais, mas o padrão de beleza estabelecido atualmente vai além: separa a pessoa em partes, desprezando o todo.

E as mulheres passam a desejar e perseguir cada item, montando um corpo que nada tem de natural e harmônico. Para isso, abusam de lipoaspirações, próteses, botox, preenchimentos e dietas, colocando a saúde em risco.

Não é possível recriminá-las: na ânsia de serem aceitas, elas seguem aquilo que se espera delas, reproduzindo um comportamento que lhes é imposto desde a infância.

Os meios de comunicação, por sua vez, exploram a imagem da mulher perfeita, linda, realizada e feliz. Sabem muito bem que associar beleza e felicidade é uma receita, há tempos, bastante lucrativa.

A indústria de beleza também lucra com o padrão estabelecido. Somos campeões mundiais de cirurgias plásticas estéticas e o segundo maior mercado consumidor de cosméticos do mundo. Procedimentos estéticos e produtos de beleza vendem a ilusão de que poderemos alcançar, desde que tenhamos dinheiro, um padrão de beleza inquestionável.

Será que realmente desejamos que nossas meninas passem a vida perseguindo o corpo perfeito? Que gastem tempo, dinheiro e a saúde atrás de um padrão de beleza que, na maioria das vezes, nada tem a ver com o delas?

Na verdade, vendemos-lhes uma mentira. A felicidade não está no corpo dito perfeito, elas não serão mais amadas caso o conquistem, nem terão uma vida melhor.

Em vez disso, deveríamos ensinar-lhes a viver com saúde, respeitando o próprio corpo e suas características. A autoestima não é algo dado, mas construído por meio de vivências positivas que reforcem o amor próprio e a confiança em si.


É preciso parar de iludi-las, de comparar mulheres a bichos, bonecas, frutas e outros objetos inanimados, de aceitar que elas sejam vendidas aos pedaços para satisfazer uma sociedade machista que, além de não se importar de fato com elas, será a primeira a descartá-las quando elas não mais servirem a seus propósitos.

Encerro aqui com uma frase famosa da escritora francesa Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Resta saber que mulher desejamos que nossas meninas se tornem.



*texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A violência doméstica não é assunto privado


Imagine que você vá a um chá de bebê em que haja trinta mulheres. Agora suponha que dez das convidadas tenham sido ou serão vítimas de violência por parte dos parceiros.

Parece absurdo? Pois, segundo pesquisa realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e divulgada em uma série de estudos pela revista médica The Lancet, um terço das mulheres sofre esse tipo de violência no mundo todo.

A pesquisa aponta ainda que de 100 a 140 milhões de mulheres e meninas foram vítimas de mutilações genitais que incluem a remoção parcial ou total da genitália externa feminina, prática comum em alguns países, principalmente da África e da Ásia. Setenta milhões de meninas se casaram antes dos 18 anos, a maioria contra sua vontade, em várias regiões do mundo.

A violência contra mulheres e meninas não é realidade apenas dos países pobres. Também faz parte do dia a dia de países ricos e é tolerada, em níveis diferentes, no mundo.

Apesar de a Organização das Nações Unidas (ONU) ter reivindicado maior investimento dos países visando a reduzir a discriminação de gênero, a violência contra a mulher é tão comum que se tornou questão de saúde pública.

Os motivos que levam a ela são vários, entre eles: práticas machistas que fazem com que homens considerem a mulher sua propriedade, acesso restrito das mulheres à saúde e educação, baixo índice de participação feminina na política, estruturas discriminatórias de políticas e instituições.

Mas será impossível reduzir os altos índices de violência de gênero ou teremos de aceitá-los e conviver com eles, como vimos fazendo?

A primeira medida a ser adotada pelos países, segundo os pesquisadores, é reconhecer como prioridade a necessidade de combater a violência contra mulheres e meninas e assumir que ela impede o desenvolvimento das sociedades em todos os âmbitos. Para isso, é necessário o investimento de recursos financeiros em intervenções e programas eficazes no combate e na prevenção da violência.

É importante, também, mudar as leis e políticas que ajudam a perpetuar a violência. O modo como sociedades do mundo todo, amparadas em leis perversas, aceitam esse tipo de violência é deplorável.

São necessárias políticas de intervenção nas áreas da saúde, educação e segurança para evitar a violência e, quando não isso não for possível, acolher a mulher de fato.

Hoje, no Brasil, sabemos que há diversos problemas no acolhimento à vítima de violência de gênero, apesar dos avanços em políticas e leis relacionadas à violência contra a mulher. Os serviços de saúde e a polícia não estão preparados para receber as vítimas. A Justiça tampouco encaminha os casos com a competência e rapidez que se espera em situações assim.

A violência contra a mulher não é um problema privado que deve ser resolvido em casa e empurrado para debaixo do tapete da sala. É preciso denunciá-la, pois somos todos responsáveis por ela.


*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Falta de libido


A noite chegou, você terminou todos seus afazeres, as crianças dormem tranquilamente e ao seu lado está o homem que você ama, cheio de desejo. Porém, a única coisa que você consegue pensar é em virar para o lado e dormir.

Quem já passou por isso precisa saber que não está sozinha. Pesquisa divulgada no ano passado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo por meio do Cresex (Centro de Referência e Especialização em Sexologia) do Hospital Pérola Byington revela que 48,5% das mulheres que procuram ajuda médica por conta de disfunções sexuais sofrem de falta ou diminuição do desejo sexual, dor durante as relações sexuais ou dificuldade para atingir o orgasmo. A pesquisa com 455 mulheres também mostrou que apenas 13% dos casos têm origem orgânica, a imensa minoria, portanto.

Descontados os problemas físicos que podem levar às disfunções sexuais, podemos pensar em alguns aspectos socioculturais que afetam a sexualidade feminina.

Em primeiro lugar, precisamos considerar que as meninas aprendem a repreender a sexualidade desde pequenas. Enquanto aceitamos e até incentivamos a masturbação e a curiosidade sexual masculina, ensinamos as meninas a se resguardar, a não expressar sua sexualidade. Elas, portanto, se tornam mulheres que desconhecem o próprio corpo e todo o prazer que ele pode lhes proporcionar.

Depois que cresce, a mulher é incentivada a se casar e procriar. Dentro da família assume, na maioria das vezes, o papel de cuidadora, responsável pelo bem-estar de todos. Exatamente como nossas avós, com a diferença que muitas ainda têm de trabalhar fora.

A mulher, cansada, passa a enxergar o parceiro que costumava atrai-la tempos atrás como parte das suas obrigações. Uma visão nada sexual.

Os homens também em geral têm pouca paciência e habilidade para despertar o prazer feminino. Muitas vezes parecem esquecer que a relação sexual envolve, nesse caso, duas pessoas e que uma é bem diferente deles.

As revistas e programas femininos só aumentam a sensação de culpa ao dizerem que é preciso ser criativa para “apimentar” a relação. Como se para ser criativo não fosse preciso sentir desejo sexual e não vice-versa.

Como abrir espaço para o desejo? Antes de tudo, é preciso se livrar da culpa e sentir-se merecedora do prazer sexual. É necessário dissociar a relação conjugal da vida cotidiana, tentar ver o homem como parceiro de fato na busca pelo que lhe agrada e, se preciso, buscar ajuda profissional.

Assumir toda a responsabilidade por uma vida sexual pouco satisfatória é supor, erroneamente, que o sexo é algo dissociado das outras áreas da vida.

*Texto orginalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A cultura do estupro


Em 2013 houve 50.320 estupros registrados no Brasil, cerca de 25 casos para cada 100 mil habitantes. Os dados são do 8o Anuário Nacional de Segurança Pública, divulgados no último dia 11.

Pesquisa do Ministério da Justiça afirma que apenas 7% a 8% dos casos de estupro são denunciados no Brasil. Assim, apesar de os números registrados impressionarem, eles mostram algo ainda mais grave: a subnotificação do estupro.

Na Suécia, houve 63 casos de estupro para cada 100 mil habitantes em 2010, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas). Mais casos que o Brasil, portanto.

Contudo, será que a Suécia, cujo índice de desenvolvimento é um dos mais altos do mundo, tem mais casos de estupro que o Brasil?

Não exatamente. O que ocorre é que o país escandinavo incentiva as mulheres a denunciar esse tipo de crime ao adotar, entre outras medidas, o registro de cada estupro como uma ocorrência. Assim, se uma mesma mulher for estuprada trinta vezes pelo marido, serão registradas trinta ocorrências e não apenas uma, como no Brasil.

Tanto o alto número de casos registrados quanto os subnotificados revelam uma triste realidade: o Brasil tolera e incentiva o estupro a ponto de podermos afirmar que o crime faz parte da nossa cultura.

Por meio da culpabilização da vítima, estimulamos que as mulheres estupradas se escondam e acabem protegendo seus algozes. Afinal, é comum elas ouvirem de policias e da própria família que estavam embriagadas, usavam roupas curtas e apertadas, que andavam sozinhas à noite ou não deixaram claro que não desejavam o ato sexual. A vítima, portanto, sente medo e vergonha de denunciar.

A sexualização da mulher como objeto é outro fator que estimula o alto número de casos. Desde crianças aprendemos que o corpo da mulher é um objeto que pode ser consumido como qualquer outro. O menino cresce acreditando nisso e, o pior, a menina também.

O estupro tornou-se, portanto, tão banal que passou a ser aceito e tolerado. Basta ver a pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgada no primeiro semestre deste ano e que revela, após correção dos dados, que 26% dos entrevistados acreditam que uma mulher usando roupa que revele o corpo merece ser atacada.

É preciso que fique claro: nenhuma mulher merece ser estuprada. Ela é dona do seu corpo e a única que pode dele dispor. E a culpa nunca é da vítima, independentemente da sua conduta. Esses são pressupostos básicos para que o crime de estupro deixe de ser parte da nossa cultura.

*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O acinte dos outros

Cena I: dois rapazes de cerca de 20 anos se beijam em um trem do metrô de São Paulo. Outros passageiros se sentem incomodados e os mandam sair sob xingamentos. O casal resolve ignorar os insultos e é colocado para fora do vagão a socos e pontapés.

Cena II: um ator famoso e casado beija outra moça, e um paparazzo, esse tipo que se tornou tão comum à fauna humana, flagra o ato, que sai estampado em várias revistas de fofoca, causando indignação nas redes sociais. A mulher, também famosa, não só perdoa o marido como manda que cada um cuide de si. Sua reação é considerada uma afronta por aqueles que desejavam vê-la, aos prantos, expulsar o marido infiel de casa.

Sempre me perguntei por que as pessoas se incomodam tanto com a vida dos outros. O que interessa se a vizinha gosta de meninas ou se o filho da moça que trabalha na sua seção tem cinco furos na orelha e dez tatuagens no braço? Em que o modo como os outros levam a vida altera a sua?

Tenho uma teoria. O comportamento diferente incomoda, agride porque obriga as pessoas a confrontar o fato de que seguem normas e condutas sem nem ao menos saberem por quê.

Elas se aborrecem com aqueles que ousam não seguir ao pé da letra as regras que a sociedade inventou para si.

Qual outra desculpa para alguém se sentir mal diante de dois jovens trocando carinho em um trem? Ou para julgar e recriminar um casal que nem ao menos faz parte do seu círculo de amigos?

Alguns não aceitam que os comportamentos e valores adotados por eles sejam ignorados ou menosprezados e tentam impô-los aos outros. Como eles acreditam e seguem esses valores e preceitos, ninguém pode ousar negá-los publicamente. Se o fizerem, que seja escondido, pelo menos.

A coragem de quem resolve não viver como a maioria e ainda tem o atrevimento de assumir sua posição é um desplante para aqueles que preferem a hipocrisia.


Porém, se há algo a ser admirado na humanidade é a diversidade. Somos diferentes, e ainda bem. E, ao contrário do que fazem as pessoas que julgam e recriminam aqueles que pensam de outro modo, devíamos aplaudir quem tem coragem de ser o que é.

sábado, 8 de novembro de 2014

O preço da magreza

Carolina tem 10 anos e um sonho: perder a gordura da barriga que só ela consegue ver. Sua mãe, Paula, de 37 anos, tenta emagrecer desde os 14 e nunca atingiu o peso desejado, apesar dos esforços que envolvem dieta, exercícios físicos e tratamentos estéticos.

Como Carolina, 77% das jovens de 10 a 24 anos entrevistas pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo têm propensão a desenvolver algum tipo de distúrbio alimentar, como anorexia e bulimia. Entre essas garotas, 39% estavam acima do peso e 46% acreditavam que mulheres magras são mais felizes.

Os distúrbios alimentares são problemas extremamente graves. A taxa de mortalidade da anorexia, por exemplo, é de 15% a 20%. Cerca de 90% dos pacientes são do sexo feminino.

A mulher que deseja perder peso quase nunca o faz por motivos de saúde. O que as move é a promessa de uma vida melhor. Poder vestir a roupa que quiser, arrumar um namorado, ser aceita e invejada pelas amigas, não ter que esconder o corpo na praia. A felicidade, portanto.

Mas por que tantas meninas e mulheres adultas acreditam que elas serão mais felizes se forem magras?

Basta abrir uma revista ou ligar a televisão para compreender a pressão sob a qual as mulheres vivem. Nos anúncios, mulheres lindas vestem roupas maravilhosas que não serviriam na maioria das brasileiras. Nas novelas e programas de TV, as mulheres fortes, bem-sucedidas e realizadas têm algo em comum: são magras.

As meninas crescem vendo as mães dando a vida para se encaixar em um padrão de beleza totalmente distante da realidade, travando uma luta inglória que quase sempre resulta em frustração.

Quando estão acima do peso, elas sofrem preconceito na escola e se esforçam para conseguir ser aceitas. Aprendem, desde muito novas, que o mais importante é ter um corpo dentro dos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade. Mais do que tudo, aprendem a menosprezar as diferenças.

Mas, como sabemos, não é nada fácil tentar adequar-se a um padrão de beleza que não é o seu. E muitas mulheres pagam com a própria saúde para chegar ao corpo supostamente perfeito.

No entanto, se por um lado a sociedade lucra com o ideal da magreza, por outro tem de lidar com o número cada vez maior de mulheres com distúrbios alimentares e outros problemas psiquiátricos associados à busca por um ideal de beleza fantasioso e irreal.

Nossas meninas estão crescendo insatisfeitas e se transformando em mulheres infelizes porque atribuem a felicidade a um padrão inatingível para a maioria. Essa busca mal-sucedida afeta a autoestima e gera insegurança em várias áreas. Sem se darem conta, elas renunciam à própria liberdade.

Enquanto não aceitarmos e respeitarmos as diferenças físicas e de comportamento viveremos frustradas, esperando a felicidade que nunca vem.

*Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Sábados de manhã

Eu e minha irmã mais nova já sabíamos: sábados e, muitas vezes, domingos de manhã eram reservados para as visitas aos pacientes do meu pai internados ou acamados. 

Separado e com duas filhas pequenas, ele não tinha alternativa a não ser nos levar a essas visitas.

Enquanto ele examinava os pacientes, ficávamos brincando no estacionamento ou aos cuidados de alguma enfermeira gentil que nos levava passear pela ala pediátrica. Não raro, íamos à casa ou ao quarto dos pacientes.

Foi assim que tomei contato com a aids, nos anos 1980.
Naqueles dias obscuros, era comum ouvir que o vírus podia ser transmitido por meio de contato social. Ciente do absurdo dessa premissa, meu pai nunca nos permitiu ter medo ou evitar os pacientes. Aliás, isso não era sequer cogitado.

Os doentes e seus familiares nos recebiam em casa ou nos quartos de hospital com tanta simpatia que passamos a pedir para acompanhá-lo nas visitas.

Sempre havia um presente, um pedaço de bolo, um livro, um agrado à nossa espera. Pacientes fisicamente debilitados e abatidos nos recebiam com um sorriso terno e amoroso.

Perdi a conta de quantas vezes recebi beijos, abraços e elogios generosos de gente que eu nem sequer conhecia.

Eu não entendia à época por que essas pessoas eram tão mais receptivas do que as que sofriam de outras doenças.

Aos poucos fui compreendendo que aqueles pacientes também eram vítimas de outra doença: o preconceito.

Ao revelar que sofriam de aids, tinham de engolir os cochichos e olhares de reprovação, isso quando não eram demitidos do trabalho, expulsos de ambientes e abandonados por amigos e familiares. Como, então, não se surpreender com um médico que, além de visitá-los em casa, levava duas filhas pequenas que se sentavam na cama deles para ver televisão?

Essa experiência me deixou marcas profundas. Aprendi que o preconceito é a expressão do lado mais detestável do ser humano. E é abominável.


Também entendi que, felizmente, ele não é intrínseco. A gente aprende a ser preconceituoso, assim como a não ser. 

E isso me faz ainda ter alguma esperança na humanidade.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

As adolescentes e a camisinha


A adolescência é um período de incertezas e descobertas. As mudanças físicas, psicológicas e comportamentais pelas quais os jovens passam nessa fase são intensas.

De uma hora para outra eles têm de aprender a lidar com um corpo diferente e com determinadas responsabilidades para as quais nem sempre estão preparados.

Durante esse período, surge um novo aspecto do universo adulto: a vida sexual. Seu início não é simples para ninguém, mas as meninas estão em situação mais vulnerável, por vários fatores.
Em primeiro lugar, porque engravidam. A descoberta de si e do outro traz a necessidade de lidar e assumir, muitas vezes sozinha, o risco de gerar outra vida.

Apesar da possibilidade de gravidez e de contrair doenças sexualmente transmissíveis, o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), divulgado em 2012, revelou que 40% das meninas entre 14 e 25 anos não usam preservativos. Um terço dessas jovens (32%) já engravidou; 12,4% sofreram abortamento espontâneo ou provocado.

A infecção pelo HIV vem crescendo entre as adolescentes de 13 a 19 anos. Desde 1998, o número de meninas infectadas supera o de meninos.

Inseguras para impor suas vontades, as jovens muitas vezes se submetem ao desejo dos parceiros, alguns bem mais velhos, de fazer sexo sem preservativo.

Sabemos que as meninas são criadas de maneira diferente dos meninos. Enquanto estes são estimulados a praticar sexo, elas devem ter um comportamento recatado e não demonstrar desejo.

Todos os xingamentos destinados às meninas têm cunho sexual e servem para passar a ideia de que sexo é algo sujo, a ser evitado. Também lhes ensinamos que devem esconder e disfarçar a sexualidade, se quiserem ser respeitadas.

Como esperar que a jovem, depois de aprender que sexo não deve sequer ser mencionado e que é preciso esconder seus desejos sexuais, de repente passe a se impor e exigir o uso de preservativo?

As meninas só vão se proteger se tiverem segurança e autoestima. Para isso, precisamos falar de sexo com elas desde cedo, ensinar-lhes que se valorizar não é negar seus desejos e sim saber estabelecer relações saudáveis, em que se sintam respeitadas.

É necessário que entendamos, de uma vez por todas, que as meninas também têm desejos e que, de uma forma ou de outra, eles serão expressados. Resta saber em que condições queremos que isso aconteça.

 *Texto originalmente publicado no www.drauziovarella.com.br

                  

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Para eu não me esquecer


Comece tudo outra vez. De novo mesmo. Do começo. Porque começar dá trabalho, mas ficar parado cansa.

E termine também. Muitas vezes. Porque não dá para começar sem terminar.

Ame um tanto, de um jeito exagerado, escrachado. Com vontade, sem pudor. Para valer a pena.

Sonhar é bom, mas não muito. Não perca a mão, mas tire os pés do chão.

Siga o coração, mas só se ele bater forte, descompassado, sem exatidão.

Arrisque, aposte. Um pouco de impossível.  E torça para dar errado de vez em quando.

Assuma também. Pelo menos para você. Para os outros, nem sempre.

Acima de tudo, não fuja da liberdade. Nem tente: é pior que enfrentá-la. E faz mal para o fígado. Evite.

Mude de ideia vez ou outra. Aliás, toda hora. Depois, mude mais uma vez.

Atire-se. E aguente o tranco. Pode gritar. Chorar também pode. Quebrar tudo, só se não tiver outro jeito. Melhor não.

Vez por outra, deixe entrar quem não lhe quer, mas só para lembrar que não deve mais deixar entrar quem não lhe quer.

Não lute contra si mesma. Aceite-se. E tenha muito amor próprio. Quilos, montes, baldes.  

E abrace, beije, aperte, amasse, emaranhe-se, confunda-se. Faz um bem danado.

Ria quando der. De manhã, de tudo, de você.

Nem sequer pense em culpa. Ela fica muito feia em você.


Por fim, assuma sua finitude. É inevitável. Fazer o quê?

E, se der tempo, repita tudo outra vez.

sábado, 25 de outubro de 2014

As dificuldades dos tratamentos para infertilidade

 Pesquisas apontam que cerca de 15% a 20% dos casais têm ou terão dificuldade para engravidar. Como hoje em dia muitas mulheres adiam a maternidade e os tratamentos para infertilidade se tornaram mais acessíveis, são cada vez mais frequentes os casais que buscam as clínicas de fertilização.

Para comprovar a necessidade de tratamento, a mulher começa uma verdadeira epopeia médica: são dezenas de exames de sangue e imagem, muitas vezes dolorosos, para comprovar a dificuldade em engravidar. Para o homem, na maioria dos casos basta um espermograma, que verifica a contagem e a qualidade dos espermatozoides.

Comprovada a necessidade do tratamento, seguem-se mais exames, consultas e tratamento medicamentoso para estimular a ovulação. Em certos casos, o tratamento é cirúrgico, envolvendo anestesia, internação e repouso. Cada tentativa frustrada traz a sensação de fracasso, culpa e impotência.

Por que não comecei a tentar a engravidar antes? Por que priorizei a carreira? Será que vou conseguir ter filhos? Essas são apenas algumas das perguntas que passam a dominar a vida da futura mãe.

Além de lidar com as mudanças físicas e emocionais que os hormônios e a pressão para conseguir engravidar trazem, ela acaba condicionando sua vida sexual a relações com hora marcada, com a única finalidade de engravidar. Seu relacionamento afetivo volta, portanto, aos primórdios da humanidade, quando sexo era visto apenas como meio de procriação.

A vida financeira do casal também passa por um teste e tanto: cada tentativa de fertilização in vitro em uma clínica particular não custa menos de 10 mil reais, e são muitos os casais que precisam passar por várias tentativas até conseguir a gravidez.

Profissionalmente também há consequências, pois, tendo de seguir os horários e dias que o tratamento impõe, muitas mulheres se queixam de não conseguir cumprir as tarefas e de precisar faltar ou chegar atrasada ao trabalho. Com medo das consequências que uma gravidez pode trazer à profissão, a maioria esconde que está passando por um tratamento.

Na verdade, o tratamento envolve o casal, mas são as mulheres que se sentem responsáveis por seu sucesso ou fracasso. É a elas que cabe toda a pressão para conseguir engravidar, mesmo quando não é a única responsável pela dificuldade.

Fragilizada e cansada, ela vê seu casamento, profissão, saúde física e mental degringolarem em nome de um sonho que, supostamente, seria do casal.

O problema nem sempre é a falta de participação do parceiro, mas a forma como os tratamentos são apresentados. Colocar a mulher como única responsável pelo tratamento apenas porque ela engravida não é justo nem correto.

Ao optar por um tratamento de infertilidade o casal deve estar ciente das dificuldades que enfrentará. Essa deve ser uma escolha de ambos, que devem se preparar para não deixar o tratamento comandar todas as áreas de sua vida.

*texto originalmente publicado no site www.drauziovarella.com.br

                  

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Bom-senso em tempos estranhos

Preciso confessar: nunca confiei muito no bom-senso das pessoas. A capacidade de julgamento pode ser influenciada por muitas variáveis, e os seres humanos estão longe de ser isentos. Portanto, já esperava paixões e ânimos acirrados nestas eleições. Até aí, nenhuma novidade.

O que vejo, no entanto, vai além. As pessoas parecem ter aberto mão da liberdade individual, do senso crítico. E o que sobra da valiosa capacidade de julgamento sem liberdade para crítica? Muito pouco.

Defender uma posição política não implica, de forma nenhuma, fechar os olhos para os defeitos e problemas que ela apresenta. Tampouco requer a demonização e desqualificação de todos que pensam diferente.

Na verdade, a forma como políticos e eleitores têm se comportado nesta eleição polarizada revela um fato mais grave: a imaturidade do nosso processo democrático.

Os debates televisivos mostram candidatos se agredindo, atacando-se e defendendo-se em um discurso vazio, em que faltam propostas e ideias claras.

Os eleitores, em tempos de redes sociais, reproduzem todo tipo de propaganda, muitas vezes mentirosas, sem ao menos se preocupar em verificar as fontes.

Ofendem-se mutuamente, com uma soberba desrespeitosa, buscando desqualificar o outro em vez de defender propostas.

Políticos, artistas, jornalistas e intelectuais se prestam a atitudes vexatórias, fazendo afirmações em que, suspeito, nem eles mesmos acreditam.

Não sou inocente, sei que política é terreno fértil para discussões e as julgo saudáveis e necessárias. Em um momento tão importante para o país, espera-se a defesa clara de pontos de vista e posições, com argumentos concisos e embasados, mesmo que apaixonados.  


Nestas eleições, infelizmente, perdemos a chance de amadurecer.