quarta-feira, 20 de abril de 2016

O que sobra para quem não é recatada e 'do lar'?

Bela, recatada e “do lar”. Poucas vezes se definiu em tão poucas palavras aquilo que se espera das mulheres. Quem achava que o estereótipo da mulher que vive para cuidar da família sem chamar a atenção para si havia ficado para trás, deve ter se espantado com a descrição feita pela revista “Veja” da mulher do vice-presidente Michel Temer, Marcela Temer.

Para mim, no entanto, não foi surpresa. Sem entrar no mérito político, a própria presidente Dilma foi alvo de várias reportagens sexistas e piadas preconceituosas justamente por fugir da imagem que Marcela Temer ostenta. Aliás, arrisco dizer que a reportagem desta semana tenha exatamente o intuito de enaltecer uma figura que é quase o oposto da presidente, com objetivos políticos.

Imaginemos que Temer fosse mulher e a revista entrevistasse seu marido, um homem 43 anos mais jovem. Primeiro, a repórter falaria sobre suas roupas, o modo como penteia o cabelo e cuida da pele, a forma como cria o filho do casal e depois terminaria elogiando o fato de que vive à sombra da esposa, quase sempre esperando, pacientemente e sem reclamar, por um minuto de atenção da companheira ocupada. Inconcebível, certo?

Não se trata de condenar Marcela. Ela provavelmente tem muito mais a mostrar, e como qualquer mulher, tem direito de ser quem é e fazer as escolhas que lhe garantam a vida que deseja. O triste é ver que a sociedade ainda enaltece uma imagem que não corresponde à maioria das mulheres.

Isso é feito de formas sutis e outras nem tantas. Todas as vezes em que dizemos a uma menina que ela precisa tomar cuidado com as roupas que escolhe, que ela não deve ter muitos namorados nem fazer sexo com “qualquer um”, que é tarefa dela e só dela cuidar dos filhos e da casa e ainda encontrar tempo e disposição para manter a beleza estamos corroborando a imagem da mulher ‘bela, recatada e do lar’.

O recado que a revista e boa parte da sociedade nos dão é para que reconheçamos nosso lugar e não ousemos sair dele. E esse lugar é, de preferência, recheado de vestidos longos e discretos em tons pastel, cercado pela família, ofuscado pelo marido, onde haja espaço apenas para, em voz baixa e com doçura, concordar e garantir a paz para que o parceiro brilhe. A ele, sim, estão disponíveis todos os espaços da sociedade.

Só há um problema: nem toda mulher aceita ocupar esse lugar. Há quem queira gritar, usar roupa curta e colorida, pintar o cabelo de abóbora, tatuar um dragão no braço, usar piercing na língua, abrir mão de constituir família e ainda assim ser respeitada.


É lamentável que, com tanto lugar disponível e tantas possibilidades, a gente ainda hoje tenha que meter o pé na porta para ocuparmos os espaços que desejamos.

*Texto originalmente publicado na página do "Quebrando o Tabu"